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Do jazz
Ouvi pela primeira vez o “Time Out”, do Dave Brubeck, em pé numa esquina de cidade do interior. O som vinha da janela de um dentista, localizada na parte superior de um sobrado. Impossível resistir aos solos de Dave e Paul Desmond. Aquele era um ritmo incomum por aqui. Estávamos no final dos anos 60 e Brubeck revolucionava a música, inovando o jazz com um som novo.
Tenho ouvido jazz a vida toda. Tive a oportunidade de assistir, ao vivo, performances de grandes músicos aqui e em NY. Infelizmente o tempo roubou-nos a arte desses artistas, hoje desaparecidos, mas que, felizmente, nós deixaram gravações memoráveis.
Existem muitas definições para o jazz, mas, pessoalmente, nunca alcancei defini-lo. Como definir uma música que extrapola os limites de nossa sensibilidade e nos arrasta por trilhas nunca antes percorridas, vertiginosamente?
Na falta de definição que me satisfaça fico com uma nada convencional, dita a mim por um amigo quando relatava as agruras de sua vida. Tinha ele se separado da mulher e passava pela fase em que tudo é incerto e o futuro enorme interrogação. Então, numa tarde, colocou na vitrola um disco do Charles Mingus e, de repente, viu-se em meio a uma tempestade de areia que invadia a sala de sua casa. A quantidade de areia aumentava depressa, quase chegando ao teto. Eis, então, o meu amigo, perdido numa tempestade e buscando o ar para respirar junto ao teto enquanto Mingus solava o seu contrabaixo. Disse-me ele não se lembrar de como escapou àquela terrível situação. O fato é que passou a temer a música de Charles Mingus que o levara a tão profundo estado de alucinação.
Agora se fala nos 100 anos do nascimento da cantora Billie Holliday, morta aos 44 anos após uma vida extremamente complicada. A voz rouca de Billie, suas interpretações que nos conduzem a extremos quase inantingíveis, sua incrível história de vida, a morte precoce no leito de um hospital quando já não passava de arremedo da mulher bonita que fora, a fabulosa cantora de “Lady Sings The Blues”.
Billie Holliday é o jazz.
A grande Ella Fitzgerald
Sempre Mariana com o jeito muito dela de dizer as coisas, concordando em parte, discordando de quase tudo para, no fim da conversa, dar uma colher de chá, distribuir um de seus raros sorrisos e dizer que as coisas existem para isso mesmo, para serem observadas de modo diferente pelas pessoas, senão que graça haveria em tudo?
Para Mariana tudo era uma questão de ritmo, de notas apressadas juntando-se numa pauta imaginária com se o mundo fosse regido por maestro pós-moderno, muito além de Stravinsky e de tudo o que se criou depois dele, inclusive a música dodecafônica do Schoenberg.
Mariana se entendia e desentendia comigo musicalmente naquela sua pachorra de ritmar nossos atos como se fizessem parte de uma ópera. Tínhamos similaridade de gosto, poucas é verdade. Ela gostava de jazz como eu embora nossos músicos preferidos fossem diferentes. Ela amava Charlie Parker, eu preferia Coleman Hawkins; para ela Sarah Vaugham era a melhor, para mim ninguém estava acima de Ella Fitzgerald, nem mesmo Billie Holiday. Ambos amávamos Gerswin e esse era um dos raríssimos pontos em que nossas opiniões convergiam. Lembro-me de que certa vez passamos uma tarde inteira ouvindo Rapshody in Blue, os dois em silêncio, meditando sobre a composição de um cara como Gerswin, tão genial que só poderia mesmo ter morrido em razão de um tumor na cabeça.
Do tempo que passamos juntos não há muito a dizer, senão dos longos passeios que fazíamos juntos, errando por ruas que não conhecíamos, muitas vezes procurando um ao outro numa área mais ou menos delimitada de quarteirões. Mariana gostava muito disso, era fetiche dela que nos encontrássemos, inesperadamente, numa rua qualquer e depois disso fôssemos curtir nossos corpos no pequeno apartamento que ela alugara há algum tempo. Naquela época ela acabara de ler “O Jogo da Amarelinha”, do Cortázar, e acho que queria experimentar a liberdade de começar um romance a partir de qualquer ponto, sem antes, nem depois, como costumava dizer.
Sem antes, nem depois. Numa tarde eu estava no apartamento dela, deitado no chão, ouvindo a Ella Fitzgerald cantar “I Could Have Danced All Night”. Mariana chegou de repente e me pediu que desligasse ou colocasse um disco da Sarah Vaugham. Achei o fim do mundo ela interromper algo que me dava tanto prazer, isso para satisfazer a um imperativo qualquer. Além do quê a Sarah não tinha as oitavas da Ella, o negócio da Sarah era o vibrato daí ser melhor ouvir a Ella. A partir daí a discussão tomou pé até cair nessa coisa toda de gosto, de diferenças pessoais e relacionamentos que não podem continuar porque as pessoas são estupidamente diferentes.
Não vou contar todo o resto da discussão, mas saí do apartamento no bairro da Bela Vista para não mais voltar. Não me recordo quantos anos se passaram desde então até hoje quando vi, de longe, a Mariana andando na Avenida Paulista. Confesso que o meu primeiro impulso foi correr atrás dela, mas parei porque afinal somos tão diferentes - ela Sarah Vaugham, eu Ella Fitzgerald. Ainda assim, eu a segui por uns dois ou três quarteirões até que me ocorreu que talvez ela tivesse me visto e por isso andasse depressa na direção do metrô.
De novo em casa liguei o som e coloquei no pick-up o vinil “Ella Sings Broadway” – odeio o som dos CDs. Não demorou e lá veio Ella cantando “I Could Have Danced All Night”, ela com seu corpo grande e voz maravilhosa, tão inocente como se nada tivesse com o fim do meu caso com a Mariana.
Águas de março
De vez em quando ouço “Águas de Março”. A gravação feita por Tom Jobim e Elis Regina é classificada por Leonard Feather, um dos mais renomados críticos de jazz, entre as dez melhores de todos os tempos.
Em “Águas de Março” Tom e Elis enfiam a mão no sagrado, sem a menor cerimônia. Eles simplesmente atravessam a fronteira do impossível e nos enviam as suas vozes de um oásis onde tudo é perfeito e absoluto. É de outra dimensão que nos acenam os dois artistas, atingindo o estado superior que o escritor Julio Cortázar traduziu em palavras:
“Se existe um dom divino no artista, esse dom não é a sua arte, conquista humana; esse dom é a entrega generosa que o artista faz de seu cosmos para que outros humanos possam se inclinar sobre ele, maravilhar-se e sentir-se um pouco acima do panorama cotidiano.”1
Maravilhado: assim recebo a generosidade de Tom e Elis a cada vez que ouço “Águas de Março”.
1. Julio Cortázar, Papeles Inesperados. Editora Alfaguara, Buenos Aires, 2009.
Human Nature
28 de julho de 1985, Theatre St. Denis, Montreal, Canadá. Miles Davis começa a tocar no seu trompete a música Human Nature, de Michael Jackson. É acompanhado por Bob Berg no saxofone, Robert Irving III no sintetizador, John Scofield na guitarra elétrica, Daryl Jones no baixo elétrico, Steve Thornton na percussão e Vincent Wilburn na bateria.
Miles é considerado um dos mais influentes músicos do século XX, tendo passado pelo bebop, pelo cool jazz, pelo jazz modal e pelo fusion. Nos últimos tempos tem avançado, solitariamente, para uma combinação entre o jazz, o funk e a música pop o que tem valido a ele críticas por não estar tocando o verdadeiro jazz. Mas ele está no auge de sua popularidade e buscando novos caminhos para chegar ao seu público.
Miles tem agora 59 anos de idade e está acima de tudo isso. Na verdade o grande Miles alcançou o invejável pórtico no qual pode tocar o que quiser. É dentro dessa perspectiva que inicia os seus solos de Human Nature. A partir daí o que se segue é impressionante. Lá está Miles Davis com seus óculos escuros, vestido com uma estranha e bela roupa negra que apresenta símbolos desenhados. Ela anda no palco entre músicos e instrumentos, curvado sobre o seu trompete vermelho que emite notas profundas e maravilhosas.
Miles está no palco e, de repente parece não estar. Na medida em que se entrega à melodia ele caminha dando a impressão de que atravessa regiões desconhecidas, avançando cada vez mais no insólito e levando-nos com ele. Homem e trompete tornam-se um só corpo que vibra em notas musicais apaixonantes. A essa altura Miles prendeu-nos com toda a sua magia e nada pode livrar-nos da imantação a que estamos submetidos, exceto o momento em que a alegoria se desfaz e Miles para de tocar.
Não é um bem um homem aquele que toca no palco do Theatre St. Denis, em 1985. Há no músico que vemos e ouvimos uma parceria com a divindade, o afastamento pouco nostálgico da condição humana, a transcendência do semi-Deus que governa os sentimentos e nos encanta com a sua música.
Já não importa mesmo o que Miles toque. Ele segura o trompete como um gato retém a sua presa, com movimentos delicados e precisos. Seus dedos se movem sobre os botões como gatilhos que disparam sobre nós sonoridades inesperadas.
Miles Davis morreu em 1991, mas continua tocando, revelando-nos muito sobre a as possibilidades da natureza humana enquanto sopra em seu trompete as notas da música de Michael Jackson.
PS: impressões recolhidas ao assistir a apresentação de Miles Davis, incluída no DVD “Miles – Live in Montreal”.
Da necessidade do jazz
Se você acorda de madrugada e não consegue dormir,
Se a vida parece desinteressante e absurda a agitação do dia-a-dia,
Se a mulher que você ama não está ao seu lado, mas nos braços de outro,
Se o empréstimo do banco que você esperava não saiu,
Se o médico avisou que você tem uma doença incurável,
Se alguém que você amava morreu e não há como se conformar,
Se o melhor texto que você escreveu na vida foi engolido por um defeito no HD,
Se o telefonema que você esperava ansiosamente não aconteceu,
Se a vaga de emprego foi dada a outro,
Se você bebeu demais e deu vexame,
Se o pneu do carro furou e está chovendo muito,
Se você está parado no trânsito há mais de uma hora e não há previsão de melhora,
Se você se atrasou e perdeu o vôo,
Se você trabalha e o seu chefe é um desgraçado,
Se ninguém reconhece o sangue que você dá para sustentar a sua família,
Se o vizinho de baixo reclama de vazamento,
Se você tem muitas multas e vai perder a carteira de motorista,
Se você contou a sua vida a um psiquiatra e ele enlouqueceu,
Se você caiu na malha fina do Imposto de Renda,
Se a sua casa foi assaltada,
Se a sua consulta pelo SUS foi marcada para dois meses depois,
Se você foi preso por engano,
Se você comeu carne estragada mesmo pagando a conta alta do restaurante chique,
Se você marcou encontro com a sua namorada e ela não apareceu,
Se você acreditou no PT e votou no Lula,
Se você era fã do Michael Jackson e não aceita a morte dele,
Se o seu vídeo game favorito quebrou e não tem conserto,
Se a vizinha gostosa que trocava de roupa com a janela aberta se mudou,
Se a sua virilidade não está lá essas coisas,
Se você foi enganado por um corretor de imóveis,
Se o elevador está quebrado e você mora no décimo segundo andar,
Se alguém confundiu você com um homem-bomba,
Se o Brasil perdeu para a Argentina,
Se você foi atingido por uma bala perdida,
Se você entrou na contramão e bateu o carro,
Se você achava que o STF fazia tudo certo,
Se você tem certeza de que o mundo vai acabar em 2012,
Se você foi reprovado no último ano da faculdade,
Se você escorregou numa casca de banana,
Se o seu time do coração foi humilhado pelo maior rival,
Se o seu carro foi roubado e o seguro não quer pagar,
Se a sua assinatura foi falsificada,
Se a televisão full HD que você comprou pifou,
Se a sua mulher quer assistir a um filme justamente na hora da final do campeonato,
Se o médico proibiu a cerveja,
Se a sua namorada não gostou do perfume que você deu a ela de presente,
Se o seu cartão de crédito foi clonado,
Se a mensalidade da escola do seu filho aumentou muito,
Se o seu apartamento está precisando de reforma,
Se o seu cunhado folgado está para chegar à sua casa,
Se a geladeira está vazia,
Se o sapato está machucando o seu pé,
Se alguém convidou você para ser padrinho de casamento,
Se o DVD pirata que você comprou não funciona,
Se você enxerga mal e perdeu os óculos,
Se a sua mulher descobriu que você assiste a filmes eróticos escondido dela,
Se a anestesia não pegou e é preciso arrancar o dente,
Se você chegou no final da festinha da escola do seu filho pequeno,
Se você tirou uma semana de férias em Fortaleza e choveu o tempo todo,
Se o café da manhã está sempre frio,
Se a crise econômica mundial se prolongar,
Se o MST invadiu as suas terras,
Se o remédio indispensável à sua saúde parou de ser fabricado,
Se a chuva acabou com a sua festa de aniversário ao ar livre,
Se os seus cabelos começaram a cair de repente,
Se a centésima nona página do livro que você está lendo está em branco,
Se a temperatura da Terra subiu muito e os mares invadiram as praias,
Se o Bandido da Luz Vermelha ressuscitar,
Se as portas dos manicômios se abrirem e todos os loucos saírem às ruas,
Se descobrirem que o reverendo Jim Jones tinha razão,
Se ficar provado que o inferno é aqui mesmo,
Se você achou que ganhou na loteria, mas estava enganado,
Se você está com o saco muito cheio de tudo…
ENTÃO, OUÇA JAZZ. O sax alto de Johnny Hodges, profundo e perfeito, levará você a um lugar onde nada, absolutamente nada, poderá atingi-lo. Lá você poderá conhecer, finalmente, a Passárgada cuja existência nos foi revelada por Manuel Bandeira.