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O Demônio da Criação
Ray Bradbury atribui suas criações literárias à existência de uma musa à qual ele batizou como “Demônio que não teme a felicidade”. Esse nome foi retirado de um poema de Frederick Seidel no qual o poeta conta como o pequeno Demônio ora se senta sobre um ombro, ora sobre o outro, e sussurra coisas que só o escritor ouve.
A confissão de Bradbury sobre a fonte de suas inspirações está no primeiro ensaio de um livro recentemente publicado em língua espanhola pela Suma de Letras e denominado “Bradbury Habla” (do original norte-americano “Bradbury Speaks”).
Muita gente pergunta por que existem pessoas que escrevem livros ou simplesmente porque são capazes de fazer isso. Há quem tome nas mãos grossos volumes e fique imaginando quanto tempo terá levado o autor delas para escrevê-las. Alunos mais preguiçosos e pouco dados a leituras calculam o seu esforço para ler obras obrigatórias pela grossura da encadernação. Ernest Hemingway criticava Balzac por escrever tanto, atribuindo a imensa obra do escritor francês à falta de mais o que fazer.
O fato é que por detrás de poucas ou muitas páginas existe sempre alguém que se debruçou sobre elas, talvez acreditando que sua missão nesse mundo fosse a de compartilhar as suas idéias com a humanidade ou, simplesmente, contar histórias para ouvintes/leitores ávidos por preencher o seu tempo.
Se Bradbury estiver certo sobre a existência de demônios que sopram idéias nos ouvidos dos escritores é de se prever que cada um tenha o seu demônio particular. Mais que isso, talvez exista uma hierarquia de demônios porque os de James Joyce e Fernando Pessoa seguramente sugerem mais idéias que os pequenos demônios que inspiram o comum dos mortais.
Mas Bradbury avança nas suas explicações sobre a origem das suas criações dizendo que em geral as idéias trazidas pelo seu Demônio resultam em textos mais ou mesmo breves que mais tarde se ampliam, chegando a se tornar romances. O mesmo acontece com situações vividas que aparentemente não significam nada, mas que, tempos depois, tornam-se úteis como narrativas de contos ou romances.
Há quem escreva por simples compulsão, outros para livrar-se de um peso que carregam às costas. Também há quem se embebede com belezas e escreva como a passear no paraíso. O importante é que não existe uma regra para a criação em si. O que há, talvez, é um dom ou, se quiserem, uma queda de pessoas imaginosas para escrever. O resto provém da experiência pessoal, da meditação e da acomodação da escrita às regras de sintaxe, enfim de um profundo mergulho nas formas de expressão.
Entre a idéia e a consumação da obra existe um abismo, por vezes incontornável. Em Jean Christophe, grande obra do escritor francês Romain Rolland, existe uma personagem por cuja cabeça passam as mais incríveis composições e árias; entretanto, esse gênio musical é incapaz de transpor uma só linha para o papel o que seria a sua consagração como compositor. O mesmo tema foi abordado, antes de Rolland, por Machado de Assis em contos como a “Cantiga de Esponsais” na qual a personagem é um músico, Mestre Romão, que se pudesse seria um grande compositor. Sobre a inaptidão de Romão para criar, diz Machado de Assis:
- Parece que há duas sortes de vocação: as que têm língua e as que a não têm. As primeiras realizam-se; as últimas representam uma luta constante e estéril entre o impulso interior e a ausência de um modo de comunicação com os homens. Romão era destas.
Assim sentenciou Machado de Assis. Quanto a você leitor, vá depressa a um espelho e mire bem os seus ombros a ver se há algum demônio sentado sobre eles; se o vir, tome tento se ele lhe sopra coisas ao ouvido; caso isso aconteça, verifique se a sua vocação tem língua ou não. Se tiver, sente-se depressa diante de um computador e comece a escrever.