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Armas de fogo
Meu pai tinha um revólver Smith-Wesson que herdará de meu avô. Vez ou outra se referia a essa arma que nunca chegou a usar. Ela tinha o significado de segurança de nossa família. Guardada numa gaveta repousava sempre pronta a entrar em ação caso fosse necessário. Mas, naquela época o mundo era mais tranquilo, a vida mais suave. Crimes aconteciam, mas não muitos. Se você lesse a Última Hora, jornal do Samuel Wainer, poderia ficar horrorizado com o noticiário sobre as violências de véspera. Diziam que se o jornal do Wainer fosse espremido sairia sangue…
Mas essas notícias soavam distantes. Na prática os assassinatos em cidades menores eram mais raros. Tanto que, quando aconteciam, geravam comentários generalizados. Usavam-se armas de fogo com parcimônia. Assim se passavam as coisas.
De modo que para quem carrega mais anos de vida em seu currículo as atuais mensagens divulgadas soam estranhas, senão incompreensíveis. Hoje, por exemplo, notícia-se que na noite passada 20 pessoas foram assassinadas em Osasco e Barueri. Outras 9 foram feridas. Banalizou-se o uso de armas de fogo e olhe que são proibidas. Novos tempos!
Já vão longe os dias em que armas de fogo permaneciam entre os guardados dos chefes de família à espera de um improvável momento de ação. Hoje moleques de 12 anos ou mais andam por aí armados e tiram vidas sem a menor cerimônia.
As armas de fogo perderam a antiga magia de objetos guardados e protetores.
O real e o imaginário
Minha avó era filha de italianos, vindos para o Brasil na segunda metade do século XIX. Atendiam os imigrantes a um projeto do Imperador D. Pedro II qual seja o de reproduzir, na Serra da Mantiqueira, culturas de frutas europeias então inexistentes no Brasil. Nos altos da Mantiqueira encontraria a gente italiana clima adequado para o plantio. Foi desse modo que várias famílias de origem italiana chegaram ao país e seus sobrenomes perpetuaram-se nas gerações seguintes, alguns deles bastante conhecidos. A quem interessar o assunto imigração italiana recomenda-se o livro “Do outro lado do Atlântico: um século de imigração italiana no Brasil” de autoria de Angelo Trento, publicação da Editora Nobel.
Minha avó casou-se muito cedo e logo engravidou de modo que meu pai estaria mais para irmão dela que filho. Aconteceu a ela enviuvar e não tornou a se casar. Eu a conheci quando ela já passava dos sessenta anos de idade. Mais tarde acompanhei de perto a evolução do câncer de mama que a mataria. Então estávamos no último quartel dos anos sessenta e a medicina não dispunha dos meios de tratamento hoje conhecidos e utilizados. A mastectomia, seguida de aplicações de radioterapia, proporcionaria à minha avó um sofrimento terrível. Desse tratamento resultou grande queimadura na região do tórax que, devido à destruição de tecidos, jamais cicatrizou, provocando dores lancinantes que perduraram até o óbito dela.
De minha avó algumas coisas ficaram como traços de seu modo de ser. Tinha ela sempre a casa cheia de parentes que apareciam, pontualmente, nos horários das refeições ou à noite para jogar tômbola. Às vezes penso naquelas pessoas sentadas em torno de uma grande mesa retangular, jogando até tarde da noite. Todas elas mortas. Também desapareceu o antigo casarão onde a minha avó morou a maior parte de sua vida, vencido que foi pela especulação imobiliária. Outro traço interessante refere-se ao fato de que minha avó raramente saia de casa, só o fazendo bem cedo, aos domingos, para ir à missa.
Hoje cedo assistia a um noticiário de televisão quando me lembrei da minha avó. Tinha ela, por hábito, ler, diariamente, o jornal “Última Hora” cujo proprietário era o Samuel Wainer. Não é o caso de me estender sobre a origem daquele jornal getulista e o papel que desempenhou no tempo em que foi publicado. Em todo caso o “Última Hora” notabilizou-se pelo sensacionalismo, sendo que dele se dizia que, caso fosse espremido, escorreria sangue. Aliás, esse comentário não se fazia sem justificativa: o jornal esmerava-se em publicar toda sorte de acontecimentos envolvendo crimes, alguns deles realmente hediondos.
O problema é que ao ler diariamente o “Última Hora” a minha avó acabava tendo uma visão distorcida da realidade que a cercava, compondo-se para ela um imaginário de grandes perigos. Morando em pacata cidade do interior, na época muito segura e com baixíssimo índice de criminalidade, a minha avó preocupava-se com os parentes prevenindo-os contra os perigos de um mundo no qual tantos crimes aconteciam.
Eu fazia a barba hoje de manhã enquanto um bem apessoado apresentador de um dos noticiários passava da notícia de um crime a outra, praticamente sem interrupção: um posto invadido por marginais que espancaram os funcionários, uma linda jovem que desapareceu para, depois, seu corpo ser encontrado num matagal com sinais de estrupo; e assim por diante.
Foi nesse momento que saltei do trágico e violentíssimo mundo real que nos cerca para o dos tempos em que a minha avó viveu. Naqueles idos nem tudo era bondade, o crime existia, mas andava-se por aí sem medo de uma bala perdida ou uma agressão puramente gratuita. Pessoas eram assassinadas, grandes crimes aconteciam, mas a criminalidade não era suficiente para nos fazer descrer da existência do bem.
Os que vieram antes de nós foram mais felizes? Não creio que exista resposta para essa pergunta, ainda que levemos em consideração apenas os períodos sem guerras. Entretanto, posso dizer que o mundo parecia mais leve e a sensação de segurança era um dos mais ricos e fecundos patrimônios que possuíamos, tantas vezes enganosa é verdade, mas presente.
Tenho a impressão de que a minha avó não gostaria do mundo em que vivemos atualmente, real demais mesmo quando comparado aos perigos imaginários sobre os quais ela nos advertia.