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As personagens de ficção

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Ao longo de nossas vidas convivemos com seres reais e, em geral, damos pouca importância aos fictícios. A torturante rotina dos dias atuais concorre para que não se dê grande importância ao mundo imaginário. Fica, portanto, a ficção como uma espécie de muleta à qual recorremos para amenizar, pelo menos temporariamente, as questões cotidianas.  Tal atitude seguramente afeta o nível de prazer que a boa ficção pode proporcionar. Vá lá que a ficção funcione como refúgio, mas, nem de leve, será essa a sua principal função.

Pode ser que as pessoas não se deem conta, mas a ficção funciona como mundo paralelo à realidade. Comprova essa afirmação a influência exercida pelas personagens de ficção sobre quem com elas faz contato. Pensando bem, ao longo dos anos, travamos contato com inúmeras pessoas que vivem apenas nas páginas dos livros. Pode ser que também olvidemos o fato, mas muitas delas exerceram e exercem influência sobre o nosso modo de ser e pensar, muitas vezes de forma mais expressiva que pessoas de carne e osso a quem conhecemos. Talvez esse fato se explique porque nas páginas dos livros chegamos a conhecer a alma das personagens mais profundamente que a de muitas pessoas que nos cercam e que, em geral, não se revelam por inteiro. Quem duvida que pense em gente como Raskolnikof e Lord Jim. As penas de Dostoievski e Conrad deram-nos essas personagens por inteiro, de modo que se tornaram familiares a nós. O duplo que existe em Lord Jim é universal, mais real do que muitos seres reais de nosso convívio.

As pessoas mais jovens talvez não imaginem mas há não muito tempo a televisão não era nem de longe o que é hoje. Na verdade, há cerca de cinco ou seis décadas, a televisão brasileira engatinhava. Assistir a um canal de televisão em cidades distantes da capital era quase um milagre. Antenas colocadas em locais elevados, fios longos ligando antenas a aparelhos de televisão e outros recursos inimagináveis eram usados para recepção de imagens sem cor, por vezes borradas, muitas vezes irreconhecíveis.

Vai daí que para o lazer contribuíam não as novelas de hoje mas as tramas escritas em livros. Foi assim que, mal saído da infância, mergulhei no romantismo, lendo, por exemplo, a obra de José de Alencar. Jamais sairão da minha memória os malfeitos do vilão Loredano que apoquentava, através de mil ardis, a vida dos heróis Peri e Ceci.

Estou dizendo que mais de quarenta anos depois, Loredano continua vivo para mim, inesquecível. Eu o conheço bem, sei do ele que é capaz. Parece-me que ele está apenas preso nas páginas de “O Guarni” e que alguém deve cuidar para não deixá-lo sair de lá, tal o perigo que oferece. Loredano é, para mim, mais integral que muitas pessoas a quem conheço ou conheci e nisso consiste toda a força com que a literatura de ficção nos subjuga.

Os muitos anos de leitura nos tornam próximos de personagens de ficção, de mundos imaginários que não se desfazem. Vida afora trava-se contato com personagens de ficção: como acontece com os seres reais, a muitos deles deixamos no caminho, esquecendo-nos deles. Outros, por assim dizer, grudam em nossas memórias e os levamos conosco como parte integrante de nossa cultura e sentido de humanidade. O fato é que se torna impossível olvidá-los, condição que confere a eles mais realidade que a atribuída a muitos seres reais.

Não adianta discutir e nenhum argumento, por mais sensato que possa ser, me demoverá da absoluta certeza de que conheci – e muito bem – pessoas como o Cândido, de Voltaire, o Bráz Cubas, de Machado de Assis, o Macbeth, de Shakespare, o Joseph K, de Kafka, e muitos outros. Essas pessoas fizeram e fazem parte do meu mundo, dando à minha vida um sentido de grandeza que ultrapassa a condição da realidade em que vivo.

Pirataria em alto mar

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O mar sempre fascinou poetas, contistas e romancistas. Joseph Conrad (1857-1924), um polonês que escrevia em inglês, é um grande romancista em cuja obra são frequentes narrativas envolvendo temas relacionados ao mar. Entre muitos livros, Conrad escreveu “Lord Jim” e “O coração das trevas”, este último utilizado por Francis Ford Coppola para o roteiro do filme “Apocalipse Now”. “Lord Jim” e “O Coração das Trevas” são leituras obrigatórias para todos os que se interessam por literatura.
Entre as histórias sobre o mar têm muito destaque e contam com a preferência do público as que envolvem a pirataria. Recentemente os cinemas exibiram filmes da série “Piratas do Caribe” arrastando multidões às salas de exibição. O fato é que existe uma tendência a olhar os piratas romanticamente. Eles representam um tipo de “fora-da-lei” que se move nas imensidões dos oceanos e à sua imagem ligam-se aspectos de aventura, coragem, protesto, conquistas e por aí afora.
Se a ficção trata os piratas como seres errantes e nem sempre comprometidos com o banditismo a realidade é bem outra. A própria História do Brasil é marcada por episódios de pirataria nos quais a intenção nada romântica dos piratas era saquear a costa marítima do país. Um deles, Thomas Cavendish (1555-1592), corsário inglês, saqueou as Vilas de Santos e São Vicente em 1591. Fato curioso é que anos atrás um bar, em Santos, adotou o nome de Thomas Cavendish numa curiosa homenagem ao bandido dos mares.
Mas o que pouca gente se dá ao trabalho de reparar é o fato de que a pirataria ainda existe nos dias de hoje e sob formas muito violentas. Nesses dias o navio alemão Hansa Stavanger está em mãos piratas somalis, aprisionado que foi há três meses. A notícia está no semanário alemão “Der Spiegel” que reproduz a mensagem enviada pelo capitão do navio. Diz o capitão: não aguentamos mais.
Segundo o “Der Spiegel” o capitão refere-se ao fato a tripulação aprisionada estar exausta física e emocionalmente. Cada dia de cativeiro é mais um dia de inferno: comida e água são insuficientes, os piratas estão cada vez mais agressivos, há tripulantes doentes e a tripulação é frequentemente ameaçada de morte.
O Hansa Stavanger foi atacado subitamente no Oceano Índico. Atingido por dois projéteis que incendiaram a ponte e por rajadas de metralhadoras, o navio foi dominado. Inicialmente os piratas exigiam US$ 15 milhões e agora pedem US$ 6 milhões. Ameaçam destruir o navio caso não recebam o dinheiro. As negociações prosseguem e a situação dos reféns é insustentável. Tentativas de resgate revelaram-se perigosas demais e infrutíferas.
Os piratas somalis desmentem as imagens românticas sobre piratas mostradas em vários filmes. Dias de terror e medo acontecem a bordo do Hansa Stavanger, navio cargueiro de containers de Hamburgo. Como diz o “Der Spiegel”, o jogo não é apenas sobre vidas humanas – é sobre dinheiro. Muito dinheiro.