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Realidade e ficção no Rio
As cenas da guerra no Rio são renovadas a cada apresentação dos telejornais. Uma grande cobertura jornalística garante informações atualizadas sobre o combate entre as forças legais e os traficantes. No momento os traficantes estão cercados no Morro do Alemão e tiroteios acontecem. Estima-se em mais de 600 o número de criminosos que controlam, agora, o Morro do Alemão.
Se o leitor prestar atenção ao parágrafo anterior notará que ele poderia ser o início de uma obra de ficção. O autor da obra – conto ou romance – passaria a narrar o cotidiano das pessoas que vivem no Morro, a terrível situação de famílias prensadas pelo poder das milícias, as mortes sem sentido, o problema social e assim por diante. Caso faltasse a ele conhecimento sobre a vida em barracos no Rio, poderia dar uma relida no livro “O Cortiço” de Aluísio de Azevedo, publicado em 1890. Ou os textos de Lima Barreto sobre os bairros pobres do subúrbio:
Há casas, casinhas, casebres, barracões, choças, por toda parte onde se possa fincar quatro estacas de pau e uni-las por paredes duvidosas. Todo o material para essas construções serve: são latas de fósforo distendidas, telhas velhas, folhas de zinco, e, para as nervuras de paredes de taipa, o bambu, que não é barato. Há verdadeiros aldeamentos dessas barracas, nas covas dos morros, que as árvores e os bambuais escondem aos olhos dos transeuntes.
Como se vê, o problema não é de hoje. Não custa lembrar que a Cidade Maravilhosa sempre esteve às voltas com a miséria e a pobreza, tantas vezes descambando para a marginalidade. Quando D. João VI desembarcou no Rio, fugindo das tropas de Junot, trazendo consigo a Corte portuguesa, a cidade nada mais era que um acanhado povoado colonial sem as mínimas condições de receber e hospedar a nobreza de Portugal. Mas, sob D. João VI a cidade, transformada em capital do Império, evoluiu: prédios do governo e um novo teatro foram construídos, transferiu-se a Biblioteca Real de Portugal para a cidade, fundou-se a Imprensa Nacional e o Jardim Botânico. Mais tarde, durante o governo de Pedro II, o conde D’eu, genro do imperador, era atacado pela imprensa, acusado de envolver-se em negociatas e exploração de cortiços.
Anos depois, já em tempos republicanos, durante o governo do presidente Rodrigues Alves (período 1902-1906) a cidade foi modificada. Sob as ordens do prefeito Pereira Passos encetou-se a reforma urbanística que ficou conhecida como “Bota Abaixo”: os cortiços do centro foram destruídos e, em lugar de ruas estreitas e escuras, foram construídos bulevares e novos prédios. A população dos cortiços? Ora, expulsos do centro os moradores de cortiços deslocaram-se para os morros: foi desse modo que surgiram as favelas, custo social da transformação urbanística do Rio.
De lá para cá as favelas só fizeram crescer e muito. Existem favelas que chegam a ter de 400 mil habitantes. Em algumas delas o poder público não pode entrar porque o controle do lugar está nas mãos de um poder paralelo: o tráfico. É contra essa situação e as ações de marginais que queimam veículos e praticam outros crimes que guerra contra o tráfico está acontecendo.
Pois bem. Nenhuma novidade em tudo o que foi escrito até aqui. Todo mundo sabe o que está acontecendo no Rio e torce para que o poder público vença a batalha contra os criminosos. Mas, imagine que a situação seja resolvida e, dentro de alguns anos, alguém leia esse texto ou outro de conteúdo semelhante. Ao leitor de então poderá parecer que se trata de enredo de alguma obra de ficção. O fato é que as notícias que nos chegam do Rio mais parecem a descrição de cenas de um filme, o qual ,aliás, a mídia tem reproduzido, em alta definição, cena por cena.