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Sobre as nossas falas
De que há muito os brasileiros estão se distanciando da linguagem culta não existem dúvidas. Também, convenhamos: a gramática da língua é um porre, detentora de um arsenal de regras que torturam a estudantada. Dai que se vê, na prática, a turma se enfileirar na galeria dos famosos “jeitinhos”, burlando regras com as inevitáveis consequências de falar mal e escrever pior ainda.
Não posso afirmar com certeza, mas acho que hoje existem mais analfabetos funcionais que no passado. Fale-se mal da escola pública de hoje, mas nem sempre foi assim. Saíamos do que hoje é chamado Ensino Médio pelo menos falando e escrevendo mais ou menos bem. Hoje em dia é preciso sair à rua com a Lanterna de Diógenes procurando por gente que seja capaz de engatilhar mais ou menos bem uns três ou quatro parágrafos numa folha de papel. Isso sem tocar nos novos jeitos de abreviar palavras e locuções adotadas pelos internautas que se comunicam entre si na velocidade do vento.
Bem, não sou do ramo e posso estar a dizer bobagens. Entretanto, esclareço que o meu interesse nesse assunto diz respeito à simples curiosidade sobre a língua que hoje se fala no Brasil. Que português é esse que rola nas conversas, cheio de expressões novas, maneirismos e quando não responsos ininteligíveis? Outro dia vi um vizinho do prédio defronte sair à janela e, alta voz, pronunciar vasto xingatório que brotava de suas entranhas contra um rapazote que chutava uma bola contra a parede e, a cada vez, gritava: gol. Tantos gols fez o distinto que despertou a ira do homem da janela não sendo certo se o ofendido ofendeu-se tão herméticas eram as agressões proferidas. Seria o da janela um russo, eslovaco, imigrante africano que nunca teria falado uma só palavra de nossa língua mãe? Não, o tal da janela era brasileiríssimo e nada mais fazia que o uso de impropérios muito comuns nas bocas de seus pares, talvez da gangue da qual seria integrante. Pois que existe isso da inclusão de dialetos tribais entre pessoas de grupos distintos que falam o português a seu modo.
Hoje de manhã fui à padaria. Na volta vinha pela calçada quando reparei em dois homens que iam bem à minha frente. Estariam, os dois, aí pela faixa dos quarenta de idade e falavam sobre um terceiro, conhecido ou amigo a quem criticavam por algum motivo. Porém, o interessante era mesmo a língua com a qual se comunicavam. Chamando um ao outro de “cara” falavam sobre o “cara” - o terceiro - e nenhuma de suas frases muito curtas deixavam de ter várias repetições da palavra “cara”. Era “cara” pra cá, “cara” pra lá, porra do “cara”, valete do “cara”, etc. Não consegui entender muito do que diziam e assim cheguei ao meu portão. Confesso que antes de entrar fiquei observando aqueles dois, vestidos esportivamente numa manhã de sábado, preguiçosamente seguindo o caminho deles, trocando muitos dedos de prosa expressa, talvez, em código no qual a palavra “cara” teria muitos significados. Seriam reais? Seres imaginários, inventados apenas para colocar um final num texto? Ou ETs visitando o nosso planeta e tentando passar por alguns de nós embora sem falar corretamente o português?
Adiantando o meu lado
Aconteceu, dias atrás, na cafeteria de um shopping-center. Pedi dois cappuccinos e fiquei no balcão, esperando uma mocinha prepará-los. O processo revelou-se demorado ao que me acudiu outra funcionária me dizendo o seguinte:
- O senhor pode ir ao caixa pagar, assim adianta o seu lado.
Diante disso, achei melhor adiantar o meu lado e fui pagar. Paguei, adiantei e retornei ao balcão quase no momento em que a moça do preparo dava por terminada o sua missão.
Deu certo. Tomamos os cappuccinos que estariam bons se não viessem adoçados, com excesso de açúcar. Tão melados estavam que não consegui terminar o meu. Depois saí de lá – sentáramos a uma mesinha – pensativo. O fato é que uma coisa tão simples como tomar um cappuccino me incomodara muito. Mas, o que exatamente me incomodara? Seria o danado do paladar açucarado que me apoquentava? A cadeira um pouco dura teria cutucado a minha coluna? O preço pago pelos cappuccinos?
Confesso que não identifiquei de pronto a razão do meu desconforto. Passaram-se bem uns dez minutos até que topei com a solução: chateara-me muito aquele “adianta o seu lado”, coisa que então me pareceu grosseira demais. Entretanto – e aí a insatisfação aumentou – a frase parecia não corresponder à pessoa que a emitiu. De fato, a moça que me recomendou ir ao caixa – para adiantar o meu lado – quisera me ajudar, dissera aquilo com a melhor das intenções. Ora se ia mesmo demorar, por que eu não poderia pagar adiantado e ganhar tempo? Olhe que cappuccinos esfriam…
É no que dá o avanço de certos modismos de linguagem que são incorporados ao dia-a-dia das pessoas, muitas delas - para não dizer grande parte delas – possuidoras de instrução pouco mais que básica. Pode até ser que se ache muita frescura alguém se incomodar com expressões do tipo “adiantar o seu lado“. Entretanto, naquele lugar que tenta se passar por sofisticado, no qual trabalham funcionárias bem ajambradas e o que se vende custa caro a expressão soou grosseira, despropositada. Funcionou como se alguém interferisse justamente no meu lado, naquilo que me pertence e depende de minhas decisões pessoais. O meu lado é a parte íntima do meu ser, da minha existência, do modo como vejo e interpreto tudo o que me cerca. Pode até ser que eu esteja, como se diz por aí, “viajando na maionese”. Mas, me incomodou que pelo simples prazer de tomar um cappuccino o meu lado fosse exposto assim, ao valor de ir ao caixa e pagar a conta.
Imagino que muita gente possa discordar disso tudo, eu mesmo fico pensando se não exagero. Mas, mesmo que esteja errado: cá entre nós esse é o tal do meu lado, é a ele que estou adiantando agora, rogando para que as pessoas tenham mais cuidado com o significado das palavras, que não as usem fora de contexto e grosseiramente. E para quem duvidar de que a expressão “adiantar o seu lado” é de uso corrente recomenda-se uma olhada no twitter para constatar como ela é empregada a todo transe pelos internautas.
Pobre língua portuguesa
Quem trabalha em escolas conhece de perto o descaso das novas gerações em relação à língua portuguesa. O fato é que as novas gerações são, cada vez mais, proprietárias de vocabulário restrito e construções gramaticais erradas. Isso se percebe na fala e, com muito maior intensidade, em textos escritos. Redigir qualquer coisa é um problema! Nem sempre existe falta de imaginação: simplesmente as pessoas não conseguem expressar com coerência aquilo que querem dizer.
Os professores de português conhecem o assunto em profundidade daí que o que se está a dizer não é novidade para ninguém. Por trás da insuficiência geral, a falta de leitura tão importante para o enriquecimento do vocabulário, ordenação de ideias, aquisição de cultura etc.
É pena. Talvez hoje se encontrem cada vez menor número de pessoas que tenham amor às palavras e não as tenham como simples serviçais a seu dispor para comunicação. Não falo da oratória empolada, dos discursos políticos, mas do sabor que o som de certas palavras tem, de construções gramaticais não só corretas como eficientes em termos de expressão e comunicação.
Lembrei-me desse assunto ao topar com um velho livro, o “Pequeno Dicionário de Assuntos Pouco Vulgares”, de autoria de Alfredo de Castro Silveira. Publicado em 1960, por J. Ozon Editor, trata-se de ‘”excertos e garimpagens nos domínios da literatura abrangendo todos os ramos do saber humano”, conforme é explicitado pelo autor.
Castro da Silveira reuniu inúmeras palavras, algumas de muito pouco uso, acompanhadas de seus significados. É assim que aprendemos que o termo certo para identificar algo danoso é “estropício” e não “estrupício” como se diz, palavra essa que tem o significado de “algazarra”. Isso sem falar na diferença de “bacamarte”, que é uma arma de cano curto e “bracamarte”, um tipo de espada curta, ou espadagão, que se brandia com as duas mãos. E inúmeras curiosidades como essa de que “camelô” também pode ser chamado de “bufarinheiro” e “contrabandista” de “entrelopo”.
Os exemplos acima parecerão supérfluos, detalhes para estudiosos ou quem tem paixão pela língua. Que seja. Ainda assim, permanece a necessidade de interação das pessoas com o básico do léxico, com um número mínimo de palavras que permitam a elas expressar-se de modo suficiente a defender seus interesses e exercer as suas cidadanias.
Infelizmente, na prática não assistimos a exemplos dignificantes, bastando ver o verdadeiro show de horrores da atual campanha política em exibição nos horários gratuitos pela televisão. Outro dia vi o Tiririca pedindo aos eleitores para votar no palhaço. Não sei se ele mesmo disse, mas corre que o mote da campanha dele é “Vote no Tiririca, pior não fica”.
Sei lá o que acrescentar a isso.
Dos usos de “nosso(a)”
Foi um amigo, professor universitário e conversador brilhante, quem me advertiu, tempos atrás, sobre os perigos do uso indiscriminado da palavra “nosso(a)”. Segundo ele tomamos coisas que não nos pertencem de fato como nossas. Dessa posse, por vezes indevida, resulta a assunção de responsabilidades que não nos pertencem.
O meu amigo deu exemplos. Referiu-se à mania que temos de dizer “nosso governo” quando, na verdade, trata-se do governo do país, exercido por determinadas pessoas e não necessariamente “nosso”. Do mesmo modo – disse ele – fala-se em “nosso exército”: trata-se de um tremendo arroubo de posse sobre o exército brasileiro que, aliás, pertence ao país e não exatamente a nós, habitantes da mesma terra.
Lembrei-me disso ao assistir um debate pela televisão no qual o ex-chanceler Celso Lafer referiu-se à “nossa” política externa. Discutia-se o acordo firmado pelo Brasil com o Irã e os participantes tomavam como “nosso” o desempenho da atual chancelaria brasileira. O fato é que a ocasião revelou-se muito propícia para uma reflexão sobre o uso do pronome possessivo dado que a posição do governo em relação ao Irã não é de consenso. Afinal, fomos “nós brasileiros’ que fizemos o acordo com o Irã? É válido dizer que atos de política externa são “nossos”? Segundo o meu amigo coisas assim carecem de sentido e o emprego de “nosso(a)” é totalmente indevido.
Mas, não há exemplo melhor que o proporcionado pela ocasião em que se aproxima a realização da Copa do Mundo. A “nossa” seleção está para entrar em campo defendendo as cores nacionais. Provavelmente inexista qualquer outra coisa no país cuja posse seja dividida entre tanta gente. O fato é que nos sentimos donos da seleção: a vitória dela é “nossa” vitória. Quase não se diz: a seleção ganhou; prefere-se: ganhamos. O curioso é que nesse apaixonado ato de posse da seleção inexiste qualquer domínio de cada um de nós. Tornamo-nos proprietários de algo que em verdade não nos pertence e sobre cujo destino não nos é dado interferir. Vá lá: a seleção é do país, ou da CBF, na pior das hipóteses do Dunga.
Confesso que não tenho opinião fechada sobre esse assunto. O que fiz foi reproduzir o discurso de um amigo com o qual não sei se concordo inteiramente. Fica, portanto, em aberto, sujeito a revisão. De minha parte o máximo que posso dizer é que depois da conversa com o meu amigo tenho usado o “nosso(a)” com mais parcimônia. Longe de mim apropriar-me do que não me pertence.