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A sala de espera
Na sala apinhada espero pelo chamado da minha senha. Reparo no quadro luminoso que, a curtos espaços de tempo, faz um som estranho anunciando novos chamados. Olho para o painelzinho luminoso, observo o número e comparo com o que tenho nas mãos: não batem. Não é a minha vez. Ainda não é.
Depois de muito tempo começo a me perguntar se serei chamado. Será que não me enganei de sala? Não pertenceria o meu número a outra série, de outro lugar, talvez de planeta diferente? Consola-me a presença de uma mulher que aguarda ao meu lado. Ela já estava aqui antes de mim e permanece calma. Aceita o destino de ter uma senha que talvez nunca venha a ser chamada sem reclamar. Tenho vontade de perguntar a ela sobre demora, mas me retraio. E se ela for uma dessas pessoas que esperam por uma chance, por uma única e rara oportunidade de iniciar um monólogo interminável sobre as desgraças da vida dela, talvez o marido desaparecido, o filho assasinado, a grana curtíssima etc? Mas, não, talvez ela nem exista de verdade, talvez não passe de criação imaginária engendrada pelo meu desespero de a próxima chamada ser a do meu número para que eu possa, finalmente, me sentar diante daquela mocinha sorridente que analisa os papéis e indica às pessoas o rumo que devem tomar.
Mas, a mulher a meu lado é real. Não se move, não diz nada, mas é real. Poderia tocá-la para confirmar. Esbarrar nela, talvez isso bastasse para devolver-me ao mundo concreto da inteterminável espera que parece não ter solução.
Estou aqui a muito tempo é só agora reparei que ninguém foi chamado. Entro em desespero quando verifico que, na verdade, o número exibido no painel nunca muda. A cada toque o número se repete. A mocinha sorridente mira o vazio e ninguém se senta diante dela para mostrar os papéis. Ninguém é chamado. Só então me ocorre que esta não é uma sala de espera normal. Quem está aqui não será atendido, provavelmente não. Não tenho certeza, mas parece que estamos todos mortos. Talves esta seja a sala na qual os mortos esperam indefinidamente pelos seus julgamentos.
Aqui não existe pressa. A eternidade é longa demais, tem-se todo o tempo do mundo.
A metamorfose
Talvez seja essa a quinta ou sexta vez em que reli “A metamorfose” de Franz Kafka. Sempre por acaso, estranha compulsão, respeitados intervalos indefinidos de anos. Acontece naquelas ocasiões em que se perambula entre os livros na estante e, de repente, um deles parece vir ao nosso encontro, ato mágico, inexplicável, necessidade urgente de comunhão de impressões, como se estivesse ao alcance das mãos um segredo que no caso de “A Metamorfose” nunca será totalmente revelado.
Gregório Samsa acorda em certa manhã e descobre que se transformou num monstruoso inseto. Eis aí a porta de entrada para o mundo fantástico que se introduz de modo absoluto e inusual. Ao pobre leitor cabe aceitar ou não a situação de Gregório. Caso entenda a primeira frase como absurda nada lhe restará senão abandonar o livro. Em caso contrário seguirá adiante, participando da lenta agonia de Gregório - inexplicavelmente transformado num inseto - e na situação vivida pelos pais e irmã de Gregório diante de acontecimento tão inusitado.
Em “A Metamorfose” Kafka conduz o leitor a um labirinto sem saída, cada vez mais interiorizado em Gregório, recluso em seu quarto e refém de um corpo de inseto. A cada página adensa-se o horror da situação de um homem alijado de sua condição humana, mas mantendo intacta a sua capacidade de raciocinar. Gregório sofre como o último dos seres sobre a Terra, asqueroso até mesmo para a sua família que não sabe como livrar-se dele. Kafka dirige o leitor dentro dessa prisão absoluta de um homem incapaz de se livrar da fatalidade que o vitimou. Participa-nos o grande escritor da grande miséria da condição humana que nada pode fazer quando algo maior interrompe a racionalidade daquilo a que se está habituado ou se conhece. Gregório Samsa não pode fugir da prisão que o esqueleto externo de inseto e as finas patas a ele proporcionam. Não pode sair de seu quarto no qual a sujeira se acumula; com o tempo já não consegue até mesmo comer os restos de alimentos que a irmã ou a empregada deixam no chão do quarto. Seu mundo se desfaz, lentamente, horrivelmente.
Como afirmei reli o livro de Kafka algumas vezes. Posso dizer que a cada vez vi crescer o meu estranhamento em relação ao caso de Gregório Samsa. Trata-se de um horror inaceitável que nos leva a refletir sobre a precariedade de nossas vidas e a validade daquilo em que acreditamos. Não importa que se conheça cada passo da trajetória de Gregório Samsa, nem mesmo o fim que a ele está reservado: a cada vez lê-se o texto de Kafka com a surpresa de uma primeira leitura, descobrindo-se novas nuances em sua narrativa.
Mas, o mundo não para ainda que um dos humanos seja colhido por uma tragédia. Talvez por isso ao ser resolvida a situação de Gregório Samsa os pais e a irmã tirem um dia de folga para passear. Há que se continuar no mundo, atuando em acordo com as regras do jogo, deixando para trás memórias desagradáveis porque a vida continua e a ilusão de sermos eternos nos dá força para seguir em frente.
Cuidado com vampiros
Confesso que não faz muito tempo que deixei de ter medo de coisas ditas sobrenaturais. Durante muitos e muitos anos, principalmente durante a minha infância, tive medo dos mortos, de que fantasmas aparecessem e coisas ligadas a esse gênero.
Mas, o medo tem duas faces, uma delas a de repulsa e outra a de atração. Quando o assunto é o sobrenatural pode acontecer que aquilo que tememos paradoxalmente nos atraia. Creio que por isso sempre fui um aficionado das histórias de terror, nisso se incluindo a literatura e os filmes do gênero. Li, quando adolescente, de cabo a rabo os contos de Edgard Allan Poe e vida afora assisti a filmes estrelados por Bela Lugosi, Christopher Lee, Peter Cushing, Vincent Price, Boris Karloff e tantos outros atores. Morria de medo, mas adorava os filmes sobre vampiros. E a coisa não parava aí: num mundo que não tinha as distrações tecnológicas de que dispomos hoje e a televisão estava em formação as reuniões e conversas em família eram rotina, muito frequentes. Pois nessas intermináveis conversas sempre havia alguém para contar um caso estranho, algo sobrenatural que infundia nos presentes, senão medo, pelo menos apreensão.
Bem, de lá pra cá o mundo mudou bastante e imagino como teria sido se às pessoas daquela época alguém falasse sobre internet, TV a cabo e telefones celulares, isso para ficar no mínimo. Certamente elas ririam dessas invencionices, pura ficção científica como hoje nos parece, por exemplo, a possibilidade de viajarmos rapidamente para fora do sistema solar.
Entretanto, se o mundo mudou, a verdade é que as pessoas podem ter-se adaptado aos novos modos de ser, mas, substancialmente, continuam como sempre foram, inquietas, talvez inseguras, gerindo suas vidas dentro do contexto que as cerca. Permanecem, como sempre, as velhas perguntas sobre o destino da humanidade, o sentido da vida e por que não, sobre o que de fato existe após a morte.
É nesse ponto que se apoia a sempre crescente literatura e filmografia sobre o terror. O fato é que os vampiros estão mais vivos do que nunca. Verdade que os vampiros atuais já não estão presos às limitações a eles impostas no passado. Hoje os vampiros podem andar por aí em plena luz do dia e até existem aqueles que se privam do sangue humano. Os vampiros dos livros e filmes como “Crepúsculo” são assim. Trata-se de seres que lutam contra sua sede de sangue humano e se comportam muito bem socialmente, inclusive lutando contra outros vampiros que sugam pessoas.
Enfim, muda o cenário, mas as atrações principais são as mesmas. Vampiros e monstros continuam nas telas dos cinemas e fazem sucesso em públicos de diferentes idades. Livros sobre vampiros e lobisomens apaixonados são vendidos aos milhares em todo o mundo. O que nos leva a constatar que de fato os homens continuam os mesmos embora o mundo em que vivem tão velozmente se transforme.
Quando menino eu lia histórias sobre vampiros e temia muito que viessem, durante a madrugada, para cravar seus caninos em meu pescoço. Por isso, tinha sempre um dente de alho na janela do meu quarto e um crucifixo perto da cama. Os vampiros de então eram afastados pelo alho, não suportavam o contato com a cruz e morriam se expostos à água corrente ou a luz do sol. Os de hoje são diferentes, mas não creio que devam ser desprezados porque, queira-se ou não, em sua gênese os vampiros são sempre seres do mal. Portanto, caro leitor, cuidado com os vampiros.
Os meus medos
Aquele tio Nenê era na verdade tio de meu pai, irmão de minha avó. Sujeito sempre muito magro e falante descendia de italianos e viera do Sul de Minas, trajeto feito a cavalo, bom cavaleiro que ele era. Depois dele veio sua família: a mulher e dois filhos, que o terceiro, mais velho, morava no Rio.
De todo modo esses meus parentes abancaram-se numa casa próxima à nossa, na mesma e única rua do então vilarejo, hoje cidade com turistas e os comemorativos que fazem parte das hordas de invasores que andam por aí. Pois esse Nenê trouxe as mais terríveis histórias fantásticas as quais tinha ele muito prazer em contar. É bom lembrar que, na época, a energia elétrica da região era fornecida pela Companhia Sul Mineira de Eletricidade que, a bem da verdade, não funcionava lá grande coisa. De modo que se dispunha de iluminação fraca e muito propícia à criação de ambientes tétricos para um menino de cerca de dez anos que eu era então. Afinal e como todo mundo sabe nas sombras escondem-se os seres sobrenaturais.
O caso é que à noite, na casa do Nenê se juntavam uns tantos ao redor do fogo – fazia frio, muito frio – e ali a tradição oral rolava solta com cada um contando os seus casos escabrosos, boa parte deles envolvendo mitos conhecidos como lobisomens, capetas, sacis e outros seres imaginários que ali eram apresentados como reais e sempre ameaçadores. As melhores histórias eram sempre as do Nenê, ele proprietário da arte natural de narrar com algum enredo e recursos de gerar expectativas.
Mas, os meus medos não nasciam tanto dessas histórias que eu adorava ouvir por pura teimosia de vez que, depois, voltava a casa pela rua escura e temia ser assaltado por um desses seres estranhos. Meu maior medo sempre foi de almas de outro mundo, essas sim aterrorizantes. Minha infância foi povoada pela narrativa de fatos sobrenaturais de modo que, a partir daí, o sobrenatural passou a fazer parte da minha vida e jamais o deixei. Para isso muito contribuíram as minhas precoces leituras dos contos de Edgar Allan Poe que legaram personagens que me acompanham vida afora. Foi através de Poe que adquiri, em menino, grande temor da catalepsia, medo esse embasado no conto “Enterrado Vivo”. Quando temor me causou, anos a fio, o conto chamado “O Estranho Caso do Sr. Valdemar”, história de um homem doente que foi hipnotizado antes de morrer e ficou preso ao hipnotizador que não o deixava partir. E que horror puro e profundo naquele “Retrato Oval” que me infundiu o receio dos quadros com retratos de pessoas mortas que, naqueles idos, tinha-se por hábito pendurar nas paredes das casas.
Assim, iniciado na literatura de horror e ouvinte de relatos fantásticos desenvolvi o medo dos lugares escuros, dos corredores em cujo fim alguém do outro mundo poderia esperar por mim, das portas entreabertas, dos quartos onde dormiram pessoas já mortas, dos cemitérios onde almas vagavam madrugadas afora à espera de um momento para saírem dali e assombrar os incautos do mundo.
Já não tenho medo dos mortos, nem as assombrações me impressionam. Às vezes, quando acordo durante a madrugada e ando pela minha casa às escuras me pergunto se alguém a quem conheci e morreu não poderia de repente surgir à minha frente. Em algumas dessas ocasiões não é impossível experimentar a sensação epidérmica de alguma presença intrusa, fato evidentemente provocado por autossugestão. Ademais, confesso que não sei qual seria a minha reação caso a antiga casa de minha avó se erguesse das cinzas e eu tivesse que dormir, agora, naquela enorme e soturna sala que tanto medo me dava na infância. Quantos corpos de parentes mortos foram ali velados num tempo em que não eram muito habituais os velórios em necrotérios, isso em cidades do interior.
Por fim, destaco a importância do medo em minha formação. O contato com o sobrenatural contribuiu para a noção de relatividade da vida, a impressão de que existe algo de falso na realidade e, principalmente, para a constatação de que a incerteza é fundamental para que nos mantenhamos vivos, espécie de pacto com o imponderável que torna mais palpável o enigma da vida.
Livros de Stephen King
Para o escritor argentino Julio Cortázar um conto é verdadeiramente bom quando não nos esquecemos dele. Não sei dizer se o conceito se aplica a romances. Em todo caso, não há como olvidar os enredos de alguns romances de Stephen King.
Stephen King é um mestre do horror, popular em todo o mundo, grande vendedor de livros. Algumas de suas histórias serviram de enredo a filmes. Quem não se lembra de “Carrie, a Estranha”, a menina que acaba com uma festa e mata a maior parte de seus colegas de escola, fazendo uso de seus superpoderes?
O mundo de Stephen King é povoado por acontecimentos extraordinários e seres submetidos a situações nas quais o sobrenatural é a regra do jogo. King é criador que tece devagar e pacenciosamente a teia de fatos normais que conduzem a momentos de grande impacto nos quais o horror é celebrado em toda a sua magnitude. Quem leu “O Iluminado”, sabe perfeitamente como as coisas se passam sob a pena do mestre do horror. O escritor que vai com a família tomar conta de um hotel nas montanhas, durante o inverno, quer apenas reclusão para escrever. Não sabe ele que o hotel é assombrado e que ali conviverá com acontecimentos terríveis que o levarão a, talvez, encontrar-se consigo mesmo.
Nada é por acaso nos textos de King. Como um tecelão que multiplica fios aparentemente disformes em sua máquina, o escritor conduz o leitor através de labirintos para que, ao final, tudo se encaixe num tecido ilógico, mas possível que é a substância do mais puro horror.
Há quem considere as histórias de horror um gênero menor. Críticos importantes chegam a desqualificar a literatura fantástica sem que isso interfira na grande atração que o gênero desperta em leitores e cinéfilos. Entretanto, há que se diferenciar o terror de boa qualidade das produções que abusam de clichês nos quais o maior investimento se dá no sentido de provocar sustos. Infelizmente, a maioria dos filmes de horror produzidos atualmente ressente-se desse mal. Há sempre um corredor escuro e a mulher ou criança desavisada que caminha para receber e transmitir ao espectador o impacto de algo desconhecido e violento.
Não li todos os livros de Stephen King, mas um deles me impressionou bastante. Trata-se de “O Cemitério” história terrível na qual cadáveres enterrados num antigo cemitério ressuscitam. Entretanto, os que voltam da morte não se comportam exatamente como eram quando vivos e nessa direção as situações de horror se adensam, atraindo o leitor.
Em relação a “O Cemitério” pode-se dizer que a ideia não é exatamente original. Um dos mais importantes e melhores contos de horror chama-se “A pata do macaco”, de autoria de W. W. Jacobs. Trata-se de um clássico das histórias de terror na qual um casal de idosos perde um filho em acidente numa mina. As surpresas começam quando o casal recebe a visita de um estranho que dá a eles, de presente, uma pata de macaco. Pode-se dizer que Stephen King inspirou-se na história de Jacobs quando escreveu “O Cemitério”.
O mais recente romance de Stephen King, chama-se “11/22/63”, justamente a data do assassinato do então presidente norte-americano John Kennedy. Em “11/22/63”, um professor de 35 anos de idade viaja no tempo com a intenção de impedir o assassinato de Kennedy. O livro será lançado em novembro nos EUA e não há, por enquanto, previsão de data para que chegue ao Brasil.
O conto “A pata do macaco” faz parte de algumas coletâneas de histórias de terror publicadas no Brasil. Os interessados também podem ler o conto na internet, encontrando-o facilmente com o uso de ferramentas de busca. Quem tiver a oportunidade de ler “A pata do macaco” possivelmente concordará com a classificação de Julio Córtazar para contos verdadeiramente bons porque, certamente, jamais se esquecerá da história do casal que recebe de presente uma pata de macaco.
Fonte da Juventude
Um senhor de cerca de 80 anos embarcou num avião em Hong Kong e, horas depois, desembarcou em Vancouver, Canadá, transformado num jovem de 20 anos de idade. O fato chamou a atenção e o jovem foi preso pela polícia de fronteira. Depois, foi encontrada uma mala com um kit de disfarce que incluía uma cabeça de silicone e uma espécie de máscara para o pescoço.
Após ser preso o jovem declarou que buscava proteção de refugiado. O fato, caracterizado pela polícia como “um caso incrível de ocultação”, desperta a saborosa ideia de transformação, verdadeira fonte de juventude em ação durante uma viagem área. Seria algo como um idoso embarcar e ao desembarque ter retornado à sua juventude. O agente da transformação bem poderia ser uma nuvem portadora de combinações desconhecidas de compostos químicos que, uma vez aspirados, rejuvenesceriam. Simples assim, absurdo assim, mas milagre que se transformaria, rapidamente, em grande negócio, sendo que as companhias aéreas não dariam conta das enormes filas de velhos dispostos a pagar altos preços para o embarque.
Histórias sobre a existência de fontes da juventude sempre existiram. Consta que o conquistador espanhol Ponce de Leon foi o primeiro a aportar na Flórida, isso antes de 1500. Depois, Ponce se embrenhou no continente atrás da Fonte da Juventude que, ao que se sabe, nunca encontrou. Acabou sendo morto por uma seta envenenada durante um ataque de índios à sua expedição.
Histórias envolvendo coisas impossíveis existem, muitas delas preservadas pela tradição oral, outras tendo como berço obras de ficção. Bastante interessante é o caso de um cidadão peruano que, numa noite de intensa neblina, parou num posto de gasolina para abastecer o carro. Após abastecer, tirou do bolso o dinheiro que não foi aceito pelo frentista por tratar-se de moeda estrangeira. O peruano protestou, estava em sua terra, o Peru, como poderia ser de moeda estrangeira o dinheiro dele? Foi então que, atordoado, tomou consciência de que, na verdade, encontrava-se num posto de gasolina, no México. O fato, comprovado pelos documentos apresentados, placa do carro etc, permanece inexplicável sendo que se atribui a fatores presentes na grande nuvem de neblina o transporte instantâneo de um país a outro.
Se o fato anterior é verídico ou não, isso pouco interessa. Em torno dele gira a aura do impossível, daquilo que fere as leis da física e apela para o desconhecido. De nada adianta ponderar sobre aspectos práticos porque no mundo dos acontecimentos fantásticos a lógica é outra.
Que me faz lembrar de uma aula de um antigo professor de literatura, grande apreciador da obra de Kafka. Certa vez, referindo-se ao texto de “A Metamorfose”, o professor disse:
- Não existe em literatura melhor introdução a uma narrativa fantástica que aquela que Kafka colocou em “A metamorfose”. Na primeira linha ele diz: “Numa manhã, ao despertar de sonhos inquietantes, Gregório Samsa deu por si na cama transformado num gigantesco inseto”. Então, é isso aí: ou o leitor aceita que um homem possa acordar transformado num inseto e segue lendo o texto, ou o abandona de vez.
Creio deva ser assim a postura que devemos ter diante de fatos inusitados. Basta aceitar a possibilidade, não precisa acreditar. Aceito que o peruano possa ter sido levado dentro de uma nuvem para o México, não preciso acreditar nisso; aceito ser possível o rejuvenescimento condicionado por fatores inexplicáveis. Ponto.
Outro professor - esse algo lunático, vidrado em Roma e titular de latim - sempre dizia aos seus alunos:
- Mente aberta, mente aberta.
Ele repetia isso enquanto respondíamos a perguntas formuladas sobre as declinações latinas, ventus, venti, rosa, rosae, os leitores mais velhos hão de se lembrar delas. Desse professor trouxe comigo pouco latim, mas procurei manter a proposta de ter sempre a mente aberta.
As novas histórias de medo
Meu tio-avô era um sujeito espigado e muito falante. Vinha ele das beiradas do Estado de Minas que percorreu em lombo de cavalo. Mais que cavaleiro, meu tio-avô assemelhava-se a um tropeiro.
Homens assim vivem noutra dimensão, numa região de serras, campos e matas. Eles dormem nas beiras das estradas poeirentas, isso quando não se aboletam num cômodo qualquer da casa de um fazendeiro amigo. Nesse mundo vigoram relações fortes, sejam de amizade ou ódios que jamais cessam. Em meio a encontros e desencontros existe sempre o revólver na cintura ou bem guardado num surrado embornal. Pode acontecer que a arma de fogo permaneça quieta durante muito tempo ou nunca seja usada. Entretanto, o que importa é o fato de ela estar presente, fazer parte de um leque de possibilidades dentre as quais a morte surge como variante bastante lógica.
Homens da estirpe do meu tio-avô viram de tudo e trazem consigo um tipo de sabedoria que só a experiência pode conferir. Tal sabedoria se revela através de intermináveis histórias que contam, muitas delas de arrepiar os cabelos.
Quando menino, ouvi muitos casos de medo contados pelo meu tio-avô. Tinha ele o dom do contador de histórias nato cujas inflexões de voz e ritmos de narrativas guardam a surpresa para o final, prendendo os ouvintes com idas e vindas, como se faz nas novelas de hoje. Foi assim que me inteirei, desde pequeno, a respeito do sobrenatural e fui iniciado nas agruras do gênero fantástico, sem me dar conta de que avançava num caminho sem volta.
O fato é que nunca mais abandonei as histórias de medo. Das narrativas de meu tio-avô parti para os contos fantásticos, lendo Poe, Maupassant e tantos outros. Paralelamente, vieram os filmes de horror como os estrelados por Bela Lugosi, Boris Karloff, Peter Cushing, isso para ficar só nos mais antigos.
Com tal histórico pessoal e alguma vivência no gênero sinto-me bem à vontade para reclamar das atuais tendências adotadas pelos criadores de histórias de horror. Deixando de lado os que produzem boa literatura de horror – Stephen King e Clive Baker são dois deles – o que se encontra é uma nova forma de narrativas, mais idílicas nas quais tradicionais seres do mal se dão os desfrute de parecerem bonzinhos. Creio que os livros “Lua Nova” e “Crepúsculo” com os respectivos filmes que se fizeram sobre eles ilustrem bem a nova forma de terror que, aliás, nada têm a ver com as verdadeiras histórias de medo.
Quanto aos filmes atualmente produzidos destaque-se o abuso de efeitos especiais cuja intenção é colorir as telas com sangue e conferir grandiosidade aos sustos. A rapidez com que seres humanos se transformam em lobisomens, vampiros e outros seres, o modo como lutam entre si utilizando artes marciais, tudo isso dificilmente se enquadra nas premissas que conferem qualidade ao gênero fantástico.
De meu tio-avô não se pode dizer que tivesse ilustração. As histórias que contava vinham de gerações anteriores e continham o genuíno molho dos verdadeiros contos de horror. Parece-me que esse “molho” se perdeu com o tempo, dando origem a uma nova forma de horror que, na verdade não convence. Infelizmente o horror deturpado atualmente corre solto por aí privando os não iniciados no gênero fantástico de emoções insubstituíveis.
Presságios e Literatura Fantástica
Você acredita em presságios? Sabe, trata-se daquela percepção especial que algumas pessoas dizem ter em relação a fatos por ocorrer. Acontece que, em alguns casos, os presságios se confirmam. Coincidência? Você aí é quem sabe, quem sou eu primo para dar opinião.
Veja que estamos a falar sobre presságios e não vidência. Vidência é assunto de videntes, pessoas especializadas em prever o futuro. Não que os videntes não sejam suscetíveis a presságios. Consta que eles podem captar mais agudamente as probabilidades de acontecimentos futuros. Mas, no geral, os videntes são mesmo aqueles que utilizam a quiromancia, jogam cartas, búzios ou fazem uso de outras parafernálias para prever o futuro das pessoas que os procuram.
A esse ponto – e apenas como simples citação – torna-se impossível olvidar os videntes que aliam aos seus dotes sensitivos a prática de sincretismos religiosos, em geral ritos africanos plasmados ao catolicismo. O candomblé a macumba fazem parte do arsenal disponível a essa categoria de videntes que, quase sempre, emendam a constatação dos problemas pessoais dos seus clientes à necessidade de um “trabalho” dirigido a um orixá específico. E assim por diante.
Pois eu cresci num mundo de sinais. Até hoje não sei dizer se os sinais aos quais as pessoas próximas a mim atribuíam acontecimentos futuros, tinham ou não ligação com eles. Lâmpadas que se acendiam de repente durante as madrugadas, pios estranhos de aves, raios caindo no quintal de casa e uma infinidade de pequenas ocorrências não rotineiras adquiriam significados lógicos. Muitos desses sinais tinham longa história através das gerações familiares, mantendo os seus significados. A pesquisa desse assunto junto a pessoas idosas certamente nos traria um mundo anterior e muito próximo a nós, no qual o fantástico incorporara-se à rotina. Infelizmente o progresso e os avanços da tecnologia têm feito sepultar as raízes do fantástico em nossa sociedade, daí talvez a progressiva redução de escritores, teatrólogos e cineastas que se ocupem do gênero.
O que pretendo dizer é que um livro como o “Pedro Páramo” do escritor mexicano Juan Rulfo só pode ser oriundo de uma tradição cultural na qual o fantástico seja, ou tenha sido, parte integrante do cotidiano das gentes. Aliás, nesse sentido, os países de língua espanhola são muito pródigos em incursões no terreno do insólito. Creio que os filmes de Pedro Almodóvar sejam mais que suficientes para exemplificar o que acabo de dizer. E que dizer dos livros de Gabriel Garcia Marques?
Por fim escrevi isso para confessar que, graças aos céus, sou um péssimo pressagista, se é que existe o termo. O fato é que sou dado a sonhos etc, que felizmente não se concretizam na realidade. Nisso saí errado em reação ás minhas herdades: vários membros da minha família, em geral mulheres, eram dados a presságios muitas vezes confirmados. Sempre tive isso como simples coincidência, mas quem sabe, não?