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A presidência da República
De uma coisa estejam certos: depois que Luís Inácio Lula da Silva ocupou o cargo a presidência da República nunca mais será a mesma. Não foi a presidência que se serviu do funcionário eleito pelo povo para ocupá-la: foi Lula quem se serviu da presidência.
Nos últimos oito anos toda a aura que sempre cercou o cargo de presidente da República foi metodicamente demolida. Lula fez questão de agir fora do esperado, rompendo com a tradição. Nem Fernando Collor de Mello que se apresentava como atleta e dava voltas de jet sky em Brasília chegou perto de Lula em matéria de inovação.
O modo de ser do atual presidente da República evidencia resquícios de revanche. Não se trata de revanche consciente, mas da sublimação do passado pobre e vida difícil.
A incessante comparação de Lula com FHC tem raízes muito mais profundas que o oportunismo eleitoral: ela se fundamenta na necessidade de demonstrar a vitória do trabalhador sobre o intelectual, daquele que ascendeu ao topo vencendo etapas contra o bem nascido. Nada de errado nisso, exceto pelos exageros.
Não há como se esconder o fato de que o presidente arroga-se acima de quase tudo, mais parecendo um agente com licença especial para agir como bem entender. As sessões de leitores dos jornais estão cheias de cartas nas quais se expressa indignação pelas atitudes do presidente. “Até onde ele pretende chegar?”, “chefe de facção”, “estimulador da violência de militantes” e outras caracterizações são comuns, havendo até mesmo entre os seguidores do presidente aqueles que o criticam pelos exageros.
Por outro lado, também não se pode negar que Lula tem sorte. Herdou de seus antecessores, por assim dizer, todos os ingredientes para fazer o bolo. E cumpriu a sua tarefa. Governou num período de calmaria, sem o fantasma da inflação banida, antes dele, com o Plano Real. Seu governo passou muito bem pelas crises mundiais, o país cresceu. Méritos existem e são inegáveis.
Goste-se ou não de Lula, aprove-se ou não a sua conduta, depois dele o conceito que se tem da presidência da República terá mudado irreversivelmente. Se para bem ou para o mal só o futuro dirá.
A Bienal e “Inimigos”
Está na berlinda a obra “Inimigos”, do artista pernambucano Gil Vicente. Da sua obra, a ser exibida na próxima Bienal de São Paulo, constam quadros em que ele, o artista, aparece assassinando algumas personalidades. Fernando Henrique Cardoso vai receber tiro na cabeça; Lula está prestes a ser degolado. Outras personalidades são assassinadas por meios diferentes.
A OAB-SP protesta por entender que os quadros fazem apologia do crime. Para a OAB as obras mostram o desprezo do artista pelas figuras humanas e o desrespeito pelas instituições que elas representam, daí incitarem ao crime. Reconhecendo que não se pode impedir que uma obra seja criada a OAB-SP afirma que deve-se impedir a exposição em espaço público de obra que afronta a paz social.
A Fundação Bienal considerou tentativa de censura a manifestação da OAB-SP e reafirmou a exibição da obra. E Gil Vicente esclarece que sua intenção foi a de descarregar o inconsciente.
Desde que o grande iconoclasta Marcel Duchamp rompeu com todas as convenções estéticas e foi acusado de matar a arte o mundo da pintura e da escultura pode entregar-se a toda sorte de experimentações. Vanguardista à frente da própria vanguarda, Duchamp assombrou espíritos e intelectos com os seus readymades. Trabalhos como “Roda de Bicicleta”, constituído de uma roda de bicicleta sobre uma banqueta branca de cozinha e “Fonte”, nada mais que um mictório de louça virado para baixo, são readymades famosos. “Fonte” chocou até mesmo os mais avançados modernistas que viram obscenidade na obra classificando-a como “não artística”. Daí por diante Duchamp não refreou sua busca de individualidade, ainda que suas obras pudessem ser entendidas como antiarte.
A citação de Duchamp é feita com o intuito de lembrar que trabalhos aparentemente estranhos podem ter significados maiores, por vezes no futuro. Não há ensaio sobre o modernismo que não se demore na obra de Duchamp, marco de época, por mais bizarra que ainda pareça ser a pessoas que nelas não vejam qualquer significado.
Entretanto, essa não parece ser a sorte dos trabalhos de Gil Vicente. As reproduções de seus quadros da série “Inimigos”, publicadas pela mídia, não diferem muito de cenas de crime que estamos habituados a ver. Copiam a realidade, acrescentando a ela um único ingrediente capaz de chamar a atenção: o fragrante de assassinato envolve personalidades conhecidas. Nada mais atrai a atenção para “Inimigos” do que isso.
E aí? Quem tem razão? De que lado ficamos? Para começar, no caso pouca importam as intenções do artista de vez que obras têm personalidade própria e, quando terminadas, independem de quem as produziu. No mais, a exaustiva polêmica, de um lado sobre censura, de outro de afronta à paz social, talvez careça de sentido. O fato é que Bienal não deveria expor “Inimigos” por uma razão bem mais simples: trata-se do mais puro kitsch. Por isso, e apenas por isso, a obra não vale ser exposta.
O fenômeno Lula
Ainda é cedo para uma análise retrospectiva do fenômeno Lula. Alicerçado em suas origens e despontando como alguém do povo que venceu, transformou-se ele num símbolo popular cujo significado maior é o de que, sim, é possível chegar lá.
Todo mundo sabe como é o presidente, homem para quem as convicções andam de par com as necessidades. Dotado de incomum senso de oportunidade não há que se negar a ele brilho: circula com desembaraço em todos os meios e mostra-se como um intuitivo capaz de fazer escolhas acertadas quando o que está em jogo são os interesses políticos. Agindo assim, irmanou-se ao povo que o elegeu e sua trajetória consiste em conquistar cada vez mais novos adeptos. Decorre daí sua imensa popularidade, os incríveis índices de aprovação e, mais que isso, o fato de lograr transferir a uma quase desconhecida seu legado transformando-a em sua sucessora, pelo menos nessa direção apontam as pesquisas de opinião.
Mas, que fenômeno é esse? De que natureza é essa trajetória impressionante? Para tentar responder a essas perguntas recorro a um artigo escrito pelo crítico José Veríssimo, em 1901. Sob o título “Duas Lendas” Veríssimo analisa, no aniversário da morte de ambos, os perfis do ex-presidente Floriano Peixoto e do Almirante Saldanha da Gama.
Embora a imagem de Floriano seja bastante diferente da de Lula, une-os a origem simples que emula e comove a massa popular. Sobre Floriano diz Veríssimo:
“Ele é bem o homem representativo do povo brasileiro, que se embevecia de saber que ele a si mesmo se chamava de caboclo, orgulhando-se da humildade da sua origem, de ser o “legítimo brasileiro”, segundo o velho erro, irradicável da opinião popular de que o Brasil é o bronco e ruim selvagem que o habitava”.
Mais à frente Veríssimo afirma que Floriano venceu e que o povo prefere, salvo casos raros, o vencedor ao vencido. E completa, buscando explicar a lenda em que se tornou Floriano:
“Em almas simples e honestas a devoção por Floriano foi grande, intensa, completa e sincera; um pouco mais e o adoravam. Não esqueçamos que foi o medo o criador os deuses. Certo que na massa florianista havia, como há ainda, especuladores de todo o gênero, gente de má fé que explorava a situação, em que o governo era forte, mas não podia ser escrupuloso; mas fora destes era grande o número de convictos, dos desinteressados, dos arrastados no arrastamento geral que levava as massas para o soturno e singelo ditador do Itamaraty.”
Seria primarismo superpor fatos históricos e plasmar perfis em si tão diferentes. Entretanto, o texto de Veríssimo é esclarecedor no tocante à idolatria popular em relação a alguém reconhecido como igual pelo povo.
Entre o atual presidente da República e a grande massa existem identidades e ligações profundas que com certeza contribuem para a imensa popularidade dele. Esse, talvez, grande fantasma a assombrar a oposição que luta para chegar ao governo. Vencer um sentimento arraigado e adubado com promessas e benesses talvez seja mesmo tarefa impossível de Brasil de hoje. Quanto ao fato de Lula se tornar uma lenda, como o foram Floriano de Saldanha da Gama, só o futuro dirá.
Os 30 anos do PT
Conheci um camarada que tinha um jeito peculiar de dizer como entendia o problema dos outros. Certa vez, por exemplo, eu e ele conversávamos com um jovem japonês que afirmava não conseguir emprego justamente por ser japonês. Ao que o meu amigo disse:
- Eu já fui japonês, sei como é isso.
Era o jeito dele de irmanar-se aos outros, jeito aliás nem sempre bem sucedido porque, dependendo da situação, a coisa podia ser entendida como gozação.
Lembrei-me do meu antigo camarada e do seu estranho modo de ser nesses dias em que os jornais estão forrados de notícias sobre os 30 anos de existência do PT. De um lado figuram críticos ásperos ao partido, de outro os petistas que defendem a bandeira vermelha dizendo que o partido não se descaracterizou e manteve-se fiel às propostas iniciais.
Quem sou eu, primo, para entrar nessa briga de cachorro grande, movida por interesses maiores entre os quais está a disputa pela presidência da República. Mas, creio que nesse palavrório todo os petistas estão em desvantagem porque é difícil para eles demonstrar que o PT não mudou e permaneceu fiel aos seus princípios ideológicos. Daí que acho muito justo dizer aos petistas:
- Eu já fui petista, sei como é isso.
O problema é que já fui mesmo, vá lá que por curto período de tempo, na época da disputa entre o Collor e o Lula para a presidência da República. Na ocasião, o PT surgia de fato como uma alternativa para o país. Era uma espécie de luta entre a casagrande – representada pelo patriarcado nordestino na pessoa de Collor – e a senzala – a imensa massa de trabalhadores tendo a sua frente Lula, o seu expoente. Tinham, então, os líderes petistas uma linguagem, senão nova, pelo menos impactante, algo que permitia entrever uma mudança no país sempre no sentido de melhora, desenvolvimento etc. Havia, sim, a parte radical do discurso, mas essa nunca preocupou de fato porque se supunha que, se chegassem ao governo, os líderes petistas não iam, da noite para o dia, transformar o país segundo o arrivismo das palavras de seus membros mais extremados.
Ganhou o Collor e deu no que deu. Depois houve toda aquela panacéia do Pedro Collor, a corrupção do PC Farias (hoje seria café pequeno, não?) e o grande movimento que terminou com a renúncia do presidente. Naquela hora tive a impressão de que a história do país teria sido outra se o Lula tivesse sido eleito. Teríamos evitado todo aquele transe e a estagnação do país com as tresloucadas medidas econômicas da Zélia e companhia etc. Teríamos?
Pois hoje acho que votei errado naquela época. Talvez tenha sido melhor o Collor ganhar e acontecer tudo o que aconteceu. A verdade é que, aos trancos e barrancos, o país amadureceu. Agora, imagine você, se o Lula tivesse levado a eleição e se tornado presidente naquele instante. Ele não teria forças para domar o PT, nem o radicalismo e quem sabe o que teria acontecido ao país. Foi muito bom ele perder três eleições seguidas para ganhar depois. Durante esse tempo o atual presidente também amadureceu e ficou forte, tão forte a ponto de fazer do seu partido uma sombra que ele amolda do jeito que quer. Durante esse tempo muitos dos principais membros do partido envolveram-se em situações ilícitas e foram alijados do primeiro plano da política brasileira. Os Genoínos, os Dirceu, os Palocci e muitos outros decepcionaram aqueles que neles tanta confiança depositaram.
De modo que aí está um partido que fez o país sonhar com outro tipo de ordem, mas que decaiu transformando-se num partido movido a interesses, fazendo jus à alcunha de “Partido do Poder” como frequentemente é chamado pelos articulistas de jornais.
Patrulhamento ideológico
Só de ouvir falar em patrulhamento ideológico a gente sente arrepios. Quem não se lembra dos tempos da ditadura militar no Brasil, os tais anos de chumbo? Naquela São Paulo do final dos anos sessenta e início dos setenta ninguém falava nada. Você entrava num ônibus e as conversas, se haviam, deixavam de lado a política. Política não era assunto para ser conversado abertamente, vai que ali do lado estivesse alguém diposto a alguma deduração.
A geração que esteve nas faculdades naqueles anos sabe bem o significado de “patrulha ideológica”. O pior da patrulha é quando você se descobre patrulhando a si mesmo, autocensurando-se. Exemplo? Nos anos setenta fui escolhido para fazer um discurso de formatura.Passei dias patrulhando-me, sob as lentes do pior censor que já tive: eu mesmo. Escrevi páginas e páginas que foram para o lixo porque as palavras sempre tinham resíduos de revolta e seriam submetidas a aprovação prévia. No fim, não me foi possível a isenção total, daí que, após fazer o discurso, um militar presente me procurou para dizer que não concordava com as minhas opiniões mas que, ainda assim, optaria por ignorar o que eu disse. Falando sério, o discurso era bobo, bobo. O militar não era alta patente, nem nada, mas naqueles tempos uma farda tornava qualquer um tremenda autoridade. Ou temeridade.
Pois. Hoje Luiz Carlos Barreto, 81, escreve na “Folha de São Paulo” artigo cujo título é “A volta das patrulhas ideológicas”. Barreto é o produtor do filme “Lula, o filho do Brasil” e acusa “escribas, comentaristas, políticos, colunistas sociais improvisados, ex-militantes políticos de aluguel e cientistas políticos de plantão” de especularem sobre o potencial político-eleitoral do filme que teria reflexos sobre o resultado das próximas eleições presidenciais. Acrescenta o produtor que toda essa gente questiona o direito de fazer filmes sobre o que quer que seja; fazem-se filmes sobre Berlusconi, Miterrand, Juscelino, Tancredo etc, só sobre Lula não se pode fazer um filme. Diz ainda Barreto que poucos criticaram o filme como obra cinematográfica; os que escreveram sobre o filme preferiram o caminho elitista, censor, autoritário. No mais, o produtor de “Lula, o filho do Brasil” invoca a democracia, regime que não deve silenciar aqueles com quem não se concorda, eliminá-los ou evitar que se manifestem.
Há que se respeitar a posição de Luiz Carlos Barreto, homem dedicado ao cinema nacional para o qual muito tem contribuído. Entretanto, o que ele pede representa a descontextualização de uma obra cinematográfica. O filme “Lula, o filho do Brasil” não é uma obra ficcional que deva ser tratada criticamente apenas pelo viés artístico. O filme vem à luz num momento de definição de conjunturas e envolve personagem que hoje ocupa a presidência da República, engajando-se publicamente numa campanha que dê continuidade ao seu modo de governar, talvez predestinando-o a tornar-se a eminência parda de um novo governo. Mais: a personagem principal tem se mostrado ator de si mesmo , não sendo incomum que se autoglorifique; ele nega feitos do passado, mostra-se intolerante e posiciona-se como único e universal caminho para a salvação do Brasil. Não fora por isso tudo, namora com medidas autoritárias que frequentemente são rechaçadas por uma sociedade que quer continuar democrática justamente para que filmes como “Lula, o filho do Brasil” continuem a ser produzidos.
Filmes como“Lula, o filho do Brasil” podem e devem ser feitos, atestando com a sua realização a existência de um regime democrático no país. Do mesmo modo as críticas aos filmes, independentemente de suas naturezas, devem continuar a ser feitas em nome da mesma liberdade e do mesmo regime democrático. Tudo sem patrulhamentos, de lado a lado.
Ano eleitoral
Mal começa o ano e já se desenha o rumo que tomarão a imprensa e, consequentemente, as nossas atenções. Ontem os jornais destacavam a febre de inaugurações previstas tão a propósito em ano de candidaturas a cargos eletivos. Destaca-se a maratona de inaugurações já iniciadas pelos pré-candidatos à presidência da República, o governador José Serra e a ministra Dilma Roussef. Para que se tenha idéia numérica do fato, informa-se que, usando o Programa de Aceleração do Crescimento, o presidente Lula compareceu a 52 inaugurações, de 2007 até o momento. Entretanto, para 2010, estão previstas, dentro do mesmo programa, 203 inaugurações de obras com a presença do presidente e sua pré-candidata à presidência. Como se vê, trata-se de uma fantástica busca de visibilidade. Recorde-se que as próximas eleições serão realizadas no dia 3 de outubro, ou seja, dentro de nove meses ou, grosso modo, 270 dias. Isso representa que a inauguração de 203 obras em todo o país roubará ao presidente grande parte do tempo de que dispõe para governar.
O fato não é novo. Manuel Ferraz de Campos Salles foi presidente da República do Brasil no período entre 1898 a 1902. Governou contra tudo e todos referendando a política monetária liberal de seu ministro Joaquim Murtinho. Encontrou o país aos frangalhos em termos econômicos e estabeleceu acordo com os credores ingleses conhecido como “funding loan”. O governo Campos Salles foi um período de recessão absoluta visando sanear as finanças. Além disso, a Campos Salles deve-se a chamada “Política dos Governadores”, meio utilizado para dar maior poder às oligarquias estaduais obtendo, assim, sustentação ao governo federal.
Campos Salles deixou o governo com total desaprovação da população. Dera ao país dias de sofrimento e retração dos negócios com implicações profundas sobre as classes menos favorecidas. Mas, ao final, saneara as finanças e abrira caminho para que seu sucessor, Rodrigues Alves, modernizasse o Rio de Janeiro.
Em 1908, Campos Salles publicou um livro de memórias políticas intitulado “Da Propaganda à Presidência”. Embora distanciado 100 anos de nossa época e tratando de outra realidade, ainda hoje há muito a se aprender no livro de Campos Salles sobre atividade política, honestidade e história do Brasil. Um dos detalhes discutido por Campos Salles em “Da Propaganda à Presidência” é o fato da administração, nos dois anos finais de governo, ser comprometida por articulações políticas e pela necessidade do presidente fazer o seu sucessor.
Não é nova entre nós, portanto, a disposição do atual presidente da República de empenhar-se pela candidatura da ministra-chefe da Casa Civil. O que se espera é que o país não pague contas indevidas pela falta de tempo para governar e não se endivide por benesses fornecidas aos estados e prefeituras em troca de apoios eleitorais.
A edição original de “Da Propaganda à Presidência” pode ser encontrada em sebos. Existe uma edição do livro feita UNB em 1983, ainda nas livrarias. Para os interessados em Campos Salles e seu governo recomenda-se:
DEBES, Célio, Campos Salles - Perfil de um Estadista, 2 volumes, Editora Francisco Alves, 1978.
MARCONDES, Ayrton, Campos Salles - Uma investigação na República Velha, Editora Universidade Sagrado Coração, Bauru, 2001.
O ano em que o Brasil virou uma certeza
- Tenho 50 anos, trabalho desde os 17. Quando comecei o Brasil era cotado como país de terceiro mundo. De lá pra cá muita coisa mudou. O país cresceu, hoje a economia é forte. Veja que atravessamos bem a última crise mundial. Tudo muito diferente daquela loucura de inflação, do descontrole, do tempo em que a dívida externa era o fantasma que assustava toda gente.
O homem pára, olha para o mar, toma um golezinho de aperitivo e continua:
- Olhe, eu não vou ver isso, mas o Brasil ainda vai ser país de primeiro mundo. Vamos chegar lá. Meu filho vai viver num lugar de primeiro mundo, meu netinho que tem só dois meses, esse então nem precisa dizer… Obra de quem? De muita gente. O Fernando Henrique colocou o país nos trilhos, estabeleceu as bases. O Lula faz bem a parte dele. Tem sorte, mas não é só isso não: ele é competente. Não adianta dizer que ele é analfabeto, etc. A competência dele está em ter colocado nos lugares certos gente que entende. Depois, foi só tomar conta dessa gente do governo. Mão forte para isso ele tem, não duvide. É como pedir para um sujeito como eu capitanear um navio. Se aceito? Claro que sim. Me dê aí o cara que toma conta das máquinas, os que cuidam do leme, os que definem a rota, enfim todo o pessoal necessário. Aí eu mando neles e o navio segue em frente. É por isso que digo: se o PSDB quiser ganhar a eleição não será criticando o Lula. Como em toda briga eles têm que atacar o ponto fraco do adversário que é impor outra pessoa que não seja o próprio Lula.
O homem se cala e eu o deixo com os olhos imersos na paisagem. Longe, o sol declina, lentamente, por entre nuvens, emprestando ao mar um colorido indescritível. As gaivotas que há pouco voavam tão perto, recolheram-se e, no céu, a Lua entre em combate com a presença já inoportuna do Sol porque anoitece.
Penso no Brasil da minha infância, nas esperanças de progresso e nas constantes decepções que tínhamos com o modo de evoluir das coisas. Tem razão o meu interlocutor ao dizer que não veremos, mas o Brasil será um país de primeiro mundo. Existe por aí afora, nos mais distantes rincões do país uma sensação nova, que já não é esperança, tornou-se certeza de que nada impedirá que o velho sonho de país desenvolvido enfim se concretize. Nesse sentido, 2009 pode ser entendido como o ano da virada, o ano em que o Brasil tornou-se uma certeza.
O menino Lula
Está em andamento no país um processo de mitificação pessoal com consequências imprevisíveis. Trata-se do movimento de que visa emprestar cores míticas ao homem que atualmente ocupa o cargo de presidente da República do Brasil. Fazem parte do movimento o filme “Lula, o filho do Brasil” e dois livros com o mesmo título. A tudo isso se acrescenta agora o livro “O Menino Lula”, escrito pelo jornalista Audálio Dantas e publicado pela Ediouro.
As resenhas de apresentação do livro afirmam que o texto foge ao espectro infanto-juvenil dado contar a história (triste) de um menino retirante que chegou à presidência da República. Audálio Dantas traduziu em texto a narrativa feita pelo próprio presidente sobre a infância que ele próprio diz não ter tido.
A história contada pelo presidente em nada difere da acontecida com milhares de outros retirantes que no passado empreenderam a viagem ao sul do país a bordo de um pau-de-arara. De fato, fugindo ao ciclo da fome e da miséria, Dona Lindu (a mãe de Lula) empreendeu com os sete filhos a incerta aventura de tentar a sorte em região mais próspera.
O livro consiste, portanto, de um memorial sobre a vida de uma criança cuja mãe, a certa altura, declarou: “esse menino vai longe”.
E ele foi. Daí que não há que se negarem a ele os méritos de sua trajetória realmente invejável, nem interpor qualquer mau juízo à sua força e determinação. O homem venceu, é adorado pelas multidões, louve-se o fato. Mas é justamente por isso que o atual presidente da República não precisa que à sua biografia sejam acrescentadas coisas como esse livro piegas cujo intuito, ainda que negado veemente pelo autor, é construir uma imagem de superação que sirva de exemplo aos jovens deste país e atenda a fins políticos bastante claros. Convenhamos que esse tipo de coisa – da forma que foi feita - fica bem aos homens públicos já falecidos cujas personagens passam a servir muito bem a roteiros de exaltação. E este não é, definitivamente, o caso do atual presidente da República.
Como sempre acontece nessas circunstâncias, ao depois do livro publicado pouco importam as opiniões do autor e, no caso presente, a da personagem apresentada por ele. Os livros, como se sabe, adquirem vida própria e desgarram-se de quem os escreveu, comportando-se como esses filhos que se afastam dos pais e passam a seguir o seu próprio destino.
É desse modo que o livro “O Menino Lula” passa a figurar na biografia do presidente como no mínimo desnecessário dado que relata uma história muito conhecida de retirantes, acontecida com tantas outras pessoas, muitas delas alcançando sucesso em seus empreendimentos futuros. Fará talvez algum sucesso no seio das famílias que buscam apegar-se até mesmo a fios remotos de esperança; não será impossível que venha a ser utilizado em escolas públicas seguindo a políticas que visem fazer a cabeça de crianças e jovens; mas jamais poderá ser considerada como obra necessária e despida de intuitos de auto-exaltação, fato que decididamente a compromete e aos homens que participaram da sua elaboração.
Por fim, vale lembrar que já vimos filmes como esse antes, nos quais o culto à personalidade determinou consequências de triste lembrança.
Sim ou não aos refrigerantes
No Herald Tribune de 08/10 há um artigo sobre a guerra travada entre o governo dos EUA e os fabricantes de refrigerantes. O governo faz campanha contra o hábito de tomar refrigerantes responsabilizando esse tipo de bebida pela sua contribuição em relação às altas taxas de obesidade observadas no país. Autoridades governamentais e a Associação Médica Norte-americana recomendam a cobrança de impostos mais altos sobre os refrigerantes para que haja redução do consumo.
Em sentido diametralmente oposto atuam os fabricantes cuja contra-propaganda diz que os refrigerantes não são tão ruins e acusam o governo de pretender interferir nas liberdades individuais.
Há quem diga que a possível intervenção do governo não surtirá efeito, não agindo na redução da obesidade. Outros acham que é a partir de pequenas coisas como a maior taxação de bebidas açucaradas que o governo vai assumindo o controle total sobre a vida dos cidadãos.
De que governantes têm uma tendência natural a ampliar a atuação do Estado não existem dúvidas. Está acontecendo agora no Brasil cujo presidente da República, embasado em grande apoio popular, interfere em problemas além da alçada do cargo em que está investido. A pressão de Lula contra a diretoria da empresa Vale do Rio Doce é mais um passo na ampliação de seu poder pessoal.
Destaque-se que existem, sim, honrosas exceções personificadas por autênticos praticantes do liberalismo.
Voltando aos refrigerantes: afinal, você precisa de alguém, ou governo, que o ajude a tomar menos refrigerantes? É necessária uma proibição ou aumento dos preços para inibir o consumo?
O que espanta em discussões como essa dos refrigerantes é o fato de que as partes envolvidas sempre apelam para campanhas extremadas cujos resultados são reconhecidamente insatisfatórios. A verdade é que pouco ou nada adianta elevar o preço de latas de refrigerantes ou colocar cartazes por aí avisando que eles fazem mal à saúde. Nem adianta bater na tecla da restrição das liberdades individuais ou que é assim que começam os regimes totalitários. Como em tantos outros casos o que funciona mesmo é conscientizar. A palavra certa é, portanto, educação. Com ela uma enormidade de problemas pode ser reduzida, inclusive esse do consumo exagerado de refrigerantes. A questão é que esse modo de agir não produz resultados imediatos: educação é coisa que vem de trás, dos bancos escolares, da formação correta e integral de cada ser humano.
Conheço gente realmente viciada em refrigerantes. Tenho um amigo que não bebe água: ele só consome refrigerantes. São casos extremos. Para muita gente crescida uma campanha educativa talvez melhore um pouco as coisas. Mas insisto: é preciso ensinar bons hábitos alimentares aos pequenos, só assim se resolverá de fato o problema da obesidade e da saúde em geral. Portanto, sem essa de que estão restringindo as minhas liberdades e fora com essa coisa de elevar os impostos para reduzir o consumo.
A minha saúde e a sua saúde, caro leitor, dependem de termos consciência do que precisamos fazer para mantê-las. Consumir ou não refrigerantes é assunto que quem decide mesmo é o interessado.
Da necessidade do jazz
Se você acorda de madrugada e não consegue dormir,
Se a vida parece desinteressante e absurda a agitação do dia-a-dia,
Se a mulher que você ama não está ao seu lado, mas nos braços de outro,
Se o empréstimo do banco que você esperava não saiu,
Se o médico avisou que você tem uma doença incurável,
Se alguém que você amava morreu e não há como se conformar,
Se o melhor texto que você escreveu na vida foi engolido por um defeito no HD,
Se o telefonema que você esperava ansiosamente não aconteceu,
Se a vaga de emprego foi dada a outro,
Se você bebeu demais e deu vexame,
Se o pneu do carro furou e está chovendo muito,
Se você está parado no trânsito há mais de uma hora e não há previsão de melhora,
Se você se atrasou e perdeu o vôo,
Se você trabalha e o seu chefe é um desgraçado,
Se ninguém reconhece o sangue que você dá para sustentar a sua família,
Se o vizinho de baixo reclama de vazamento,
Se você tem muitas multas e vai perder a carteira de motorista,
Se você contou a sua vida a um psiquiatra e ele enlouqueceu,
Se você caiu na malha fina do Imposto de Renda,
Se a sua casa foi assaltada,
Se a sua consulta pelo SUS foi marcada para dois meses depois,
Se você foi preso por engano,
Se você comeu carne estragada mesmo pagando a conta alta do restaurante chique,
Se você marcou encontro com a sua namorada e ela não apareceu,
Se você acreditou no PT e votou no Lula,
Se você era fã do Michael Jackson e não aceita a morte dele,
Se o seu vídeo game favorito quebrou e não tem conserto,
Se a vizinha gostosa que trocava de roupa com a janela aberta se mudou,
Se a sua virilidade não está lá essas coisas,
Se você foi enganado por um corretor de imóveis,
Se o elevador está quebrado e você mora no décimo segundo andar,
Se alguém confundiu você com um homem-bomba,
Se o Brasil perdeu para a Argentina,
Se você foi atingido por uma bala perdida,
Se você entrou na contramão e bateu o carro,
Se você achava que o STF fazia tudo certo,
Se você tem certeza de que o mundo vai acabar em 2012,
Se você foi reprovado no último ano da faculdade,
Se você escorregou numa casca de banana,
Se o seu time do coração foi humilhado pelo maior rival,
Se o seu carro foi roubado e o seguro não quer pagar,
Se a sua assinatura foi falsificada,
Se a televisão full HD que você comprou pifou,
Se a sua mulher quer assistir a um filme justamente na hora da final do campeonato,
Se o médico proibiu a cerveja,
Se a sua namorada não gostou do perfume que você deu a ela de presente,
Se o seu cartão de crédito foi clonado,
Se a mensalidade da escola do seu filho aumentou muito,
Se o seu apartamento está precisando de reforma,
Se o seu cunhado folgado está para chegar à sua casa,
Se a geladeira está vazia,
Se o sapato está machucando o seu pé,
Se alguém convidou você para ser padrinho de casamento,
Se o DVD pirata que você comprou não funciona,
Se você enxerga mal e perdeu os óculos,
Se a sua mulher descobriu que você assiste a filmes eróticos escondido dela,
Se a anestesia não pegou e é preciso arrancar o dente,
Se você chegou no final da festinha da escola do seu filho pequeno,
Se você tirou uma semana de férias em Fortaleza e choveu o tempo todo,
Se o café da manhã está sempre frio,
Se a crise econômica mundial se prolongar,
Se o MST invadiu as suas terras,
Se o remédio indispensável à sua saúde parou de ser fabricado,
Se a chuva acabou com a sua festa de aniversário ao ar livre,
Se os seus cabelos começaram a cair de repente,
Se a centésima nona página do livro que você está lendo está em branco,
Se a temperatura da Terra subiu muito e os mares invadiram as praias,
Se o Bandido da Luz Vermelha ressuscitar,
Se as portas dos manicômios se abrirem e todos os loucos saírem às ruas,
Se descobrirem que o reverendo Jim Jones tinha razão,
Se ficar provado que o inferno é aqui mesmo,
Se você achou que ganhou na loteria, mas estava enganado,
Se você está com o saco muito cheio de tudo…
ENTÃO, OUÇA JAZZ. O sax alto de Johnny Hodges, profundo e perfeito, levará você a um lugar onde nada, absolutamente nada, poderá atingi-lo. Lá você poderá conhecer, finalmente, a Passárgada cuja existência nos foi revelada por Manuel Bandeira.