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Malhação de Judas
Quando criança me assustavam as malhações de Judas. Hábito trazido ao Brasil pelos portugueses e espanhóis os bonecos de pano, cheios de serragem e papel, recebem toda sorte de golpes. Por costume a festa se dá ao meio-dia no Sábado de Aleluia. Judas é punido por ter traído Jesus a quem vendeu por trinta dinheiros.
Na minha infância os bonecos tinham vida, era mesmo possível dialogar-se com eles. Naquele mundo mágico - que infelizmente se desfez com o passar do tempo - os bonecos linchados sofriam e, para mim, as pessoas não ouviam suas lamúrias. Ao contrário, os malhadores despejavam nos pobres bonecos toda a sua ira e violência, rindo e divertindo-se com a dor de um ser irreal, mas que apanhava até ser completamente desmanchado ou mesmo queimado.
Talvez por isso eu tenha me tornado avesso às imagens de execuções públicas. Há quem goste de presenciar momentos trágicos, bastando lembrar da lentidão do trânsito em locais onde ocorreram acidentes. A curiosidade faz com que os motoristas retardem o movimento de seus carros só para dar uma olhadela nos carros batidos ou em corpos estendidos sobre o asfalto.
No tocante a execuções são terríveis as adotadas em certas culturas do oriente nas quais os condenados são abatidos a pedradas. No Irã persiste a condenação à morte por apedrejamento fato que tem suscitado reações e protestos em todo mundo. Talibãs volta e meia apedrejam pessoas por razões várias. Acusações de adultério são imperdoáveis e terminam em execuções.
As imagens da malhação de Judas me voltaram agora que a opinião se mostra revoltada e estarrecida com o linchamento de uma mulher em Guarujá. O caso é absurdo. A publicação na internet de informações sobre uma mulher que sequestra crianças para atos de magia negra desencadeou um movimento de caça à bruxa que terminou com o linchamento de uma inocente. Um grupo de pessoas atacou e matou a golpes, chutes e pauladas uma inocente dona de casa. O acontecimento de todo inaceitável tem despertado toda sorte de análises sobre aspectos comportamentais e a escalada da violência no país. Fala-se sobre o descrédito popular na segurança como motor a impulsionar o povo a fazer justiça com as próprias mãos. Avança-se sobre o caráter animalesco revelado em certos comportamentos que, nos últimos tempos, tem emergido e solapado as noções de civilidade.
Até agora a polícia já identificou e prendeu dois dos linchadores. Um deles disse não saber que a pobre mulher era inocente e se declarou arrependido. Muito, muito pouco para quem cometeu tamanha barbaridade: é ele quem aparece nos vídeos gravados do episódio, dando pauladas na cabeça da inocente.
Desta vez não era um boneco de palha e não se visava punir a alguém que vendeu o Senhor. Era um de nós, uma dessas pessoas que andam nas ruas e que podem ser, a qualquer momento, surpreendidas por agressões mortais.
Malhação de Judas
Quem pode com as manifestações populares? Ninguém: a consciência popular decide entre o bem e o mal, o certo e o errado, o culpado e o inocente e bate naquilo que a ela parece execrável.
Sábado de aleluia no bairro do Cambuci, São Paulo. Como acontece anualmente ali se faz a tradicional malhação de Judas. Bonecos são malhados e o povo faz justiça com as próprias mãos.
Neste sábado também foram malhados bonecos representando Alexandre Nardoni e Anna Jatobá. A ira popular contra o casal condenado pelo assassinato da menina Isabella manifestou-se de forma inequívoca. Existe algo de animalesco cercando a morte da menina daí ser preciso banir e punir sob todas as formas os assassinos, assim se decidiu e realizou.
Vejo a foto dos bonecos e penso nas pessoas reais. Raras vezes criminosos foram tratados com tanta violência pelo público. O veredito popular precedeu o do julgamento e ainda permanece vivo nas memórias. Pessoas se unem para bater com força em bonecos, transferindo a sua indignação ao casal recolhido ao presídio de Tremembé.
Li que pessoas portadoras do sobrenome Nardoni e sem nenhum grau de parentesco com Alexandre têm sido constrangidas. Parece haver necessidade de apagar um acontecimento revoltante, talvez voltar o relógio do tempo para evitar uma tragédia que indigna a população.
O promotor que acusou o casal Nardoni compareceu à missa celebrada em intenção da menina Isabella. Ao chegar caiu nos braços do povo. Tem-se um novo herói andando por ai, visto como uma espécie de justiceiro que colocou as coisas em seus devidos lugares e devolveu o bom sono aos justos.
O caso Isabella está encerrado embora os advogados de defesa tenham pedido um novo júri. Entretanto, inexiste espaço para que a Justiça volte atrás no assunto: seria contrariar o veredito popular e colocar a própria Justiça na berlinda. Enquanto isso, o circo montado em relação à inaceitável e trágica morte de Isabella continua em permanente função.