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Um velho piano

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Um piano do século XIX foi encontrado na Academia Paulista de Letras. Esteve lá, ignorado, durante todo esse tempo. Supõe-se que tenha sido usado em saraus durante a Semana de Arte Moderna de 1922; há suspeitas de quem tenha sido o doador de vez que o piano não faz parte do ativo de compras da Academia.

Um piano que passa despercebido durante quase cem anos lembra os versos de Manuel Bandeira no poema “Última canção do beco”: intacto, suspenso no ar . Um afinador que o examinou identificou a procedência alemã e surpreendeu-se com o bom estado das cordas e teclas. Ainda que emudecido, o piano conservou-se, esquecido, mas talvez pronto a devolver aos ouvidos humanos os sons para os quais foi preparado.

Imagino as gentes de 22 ao lado do piano, talvez Mário de Andrade a correr os dedos no teclado, tocando alguma modinha ou uma peça revolucionária. Mário ensinava música, mas terá sido bom intérprete?

Objetos antigos que permanecem são pedaços de passado que se intrometem no presente. Trazem consigo sombras de momentos vividos e terminados, evocando passos agora inaudíveis. O piano da Academia fez parte de histórias de vida encerradas e conserva delas segredos e emoções. Ao vê-lo identifica-se apenas um móvel que, quando afinado, será usado em concertos, assim se espera. Mas, com ele virá, ao presente, o som de outro tempo que embevecerá ouvintes com apelos do passado. Infelizmente o piano não trará de volta os homens e mulheres que estiveram ao lado dele na Semana de 22. Os poetas, músicos, romancistas e ensaístas de 22 já não podem ser encontrados e retornar ao presente: ficaram lá, no palco de um teatro, sendo vaiados pelas plateias, como eles desaparecidas, fazendo história, transformando-se em fotografias e textos, eternizando-se como portadores de uma nova que atravessou décadas, intacta e definitiva.

Um velho piano, um mar de histórias.

Notícia de Felippe d’Oliveira

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Felippe Daut d’Oliveira nasceu em Santa Maria, Rio Grande do Sul, em 23 de agosto de 1890. São de Affonso Arinos de Mello Franco, que privou de seu convívio, as seguintes observações:

“Misto de atleta, de turista, de homem de sociedade, de homem de negócios, quem era Felippe d’Oliveira? Másculo e belo, com um gosto um pouco exagerado, os seus anéis de pedra verde, a sua “barata” esportiva, os seus dentes claros sob o riso alegre, as suas viagens súbitas, despertavam a atenção dos idiotas e das mulheres. Ele ria, atirava o carro nas curvas, entre guinchos de freios e nuvens de pó, jogava florete, comprava passagens, assinava faturas. Nós, os mais próximos, sabíamos que ele, também, compunha poemas. E esta era, talvez, a sua principal atividade, a que lhe despertava mais carinho, mais cuidado, a que o reconciliava com a vida inútil da nossa região”.

Essencialmente um poeta, assim é definido Felippe d’Oliveira pelos que o conheceram, enfatizando-se sempre as suas múltiplas atividades que mais o faziam parecer homem do mundo. Colaborador de jornais e revistas, sua poesia reflete a polaridade de dois momentos da literatura brasileira, quais sejam o simbolismo e o modernismo. É do poeta Augusto Frederico Schmidt a observação de que a par da vida turbulenta e alegre de Felippe d’Oliveira existia nele algo que não se via e que não seria tão festivo. Schmidt reconhece na poesia de d’Oliveira mais melancolia que alegria e lembra que o célebre poema Epitáfio que não foi gravado é “obra de uma alma que contemplou de frente as paisagens vazias do irremediável, de uma alma que sentiu a desolação e a tragédia”. Daí que o Felippe que todos viam, o homem de sociedade e do esporte, preocupado em viver bem, era uma reação contra o poeta Felippe d’Oliveira, assim interpreta Schmidt.

O poeta Manuel Bandeira incluiu Felippe d’Oliveira na sua Antologia da Poesia Brasileira Moderna (1922-1947), livro publicado em 1953. Mas, bem antes, em 1933, Bandeira situou a produção de Felippe d’Oliveira, seus dois livros de poemas – Vida Extinta e Lanterna Verde, publicados com um intervalo de 20 anos – como imagens de duas épocas. Bandeira destaca que Vida Extinta é poesia do simbolismo, mas de um simbolismo que só se desenvolveu no Brasil devido a não tão pronunciada influência dos simbolistas franceses. Prossegue Bandeira afirmando que Lanterna Verde é obra de outro poeta, despojado de sentimentalidade, fazendo uso da técnica modernista.

O poema Epitáfio que não foi gravado faz parte de Lanterna Verde:

O Epitáfio que não foi Gravado

 

Todos sentiram quando a morte entrou
com um frêmito apressado de retardatária.

A que tinha de morrer, — a que a esperava, —

fechou os olhos

fatigados de assistirem ao mal-entendido da vida.

 

Os que a choravam sabiam-na sem pecado,

consoladora dos aflitos,

boca de perdão e de indulgência,

corpo sem desejo,

voz sem amargor.

 

A que tinha de morrer fechou os olhos fatigados,

mas tranquilos…

Porque os que a choravam nunca saberiam

o rancor sem perdão de sua boca,

o desejo saciado de seu corpo,

o amargor de sua voz,

a sua angustia de arrastar até o fim a alma postiça que lhe

                                                                  [fizeram,

o seu cansaço imenso de abafar, secretos, na carne ansiosa,

a perfeição e o orgulho de pecar.

 

A que tinha de morrer fechou os olhos para sempre

e os que a choravam

nunca souberam de alguém que foi de todos junto ao leito

                            [à hora do exausto coração parar

o mais distante,

o mais imóvel,

o que não soluçou

o que não pôde erguer as pálpebras pesadas,

o que sentiu clamar no sangue o desespero de sobreviver,

o que estrangulou na garganta o grito dilacerado do solitário,

o que depós, sobre a serenidade da morte purificadora,

a redenção do silêncio,

como uma pedra votiva de sepulcro.

 

Lanterna Verde — Edição de Pimenta de Melo e Cia. - 1926 - Rio de

Janeiro — págs. 66-69.

 

A participação de Felippe d’Oliveira na Revolução Constitucionalista de 1932 de São Paulo, valeu a ele o exílio na França. Foi na França que esse homem descrito com belo e atlético, amigo da natação e do remo, encontrou a morte num acidente automobilístico. O ano era o de 1933 e Felippe contava com 43 anos de idade. Sua morte provocou intensa comoção. Em sua homenagem, ainda em 1933, foi publicado pela Sociedade Felippe d’Oliveira o livro In Memorian de Felippe d’Oliveira, com artigos escritos por praticamente toda a inteligência brasileira de então. Nomes como o de Agripino Grieco, Affonso Arinos, Manuel Bandeira, Augusto Frederico Scmidt, Assis Chateubriant, Antônio de Alcântara Machado, Gilberto Amado, Gilberto Freyre e muitos outros deixaram nas páginas de In Memorian de Felippe d’Oliveira testemunhos e comentários sobre o poeta morto. Também a ele prestaram homenagens várias organizações esportivas, entre elas a Confederação Brasileira de Desportos, a Federação Carioca de Esgrima e o Clube de Regatas Vasco da Gama.

A obra completa de Felippe d’Oliveira foi republicada pela Universidade Federal de Santa Maria, em 1988, sob organização de Lígia Militz da Costa.

Os poetas bissextos

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Há casos nos quais fazer uso das idéias dos outros não é pecado. Acontece quando nos deparamos com algo que nos parece interessante demais e somos levados pela vontade invencível de compartilhar o que vimos com outras pessoas. Esse é, seguramente, o caso dos poetas bissextos cujas poesias Manuel Bandeira recolheu em antologia.

No prefácio que antecede autores e suas poesias Bandeira aconselha-nos a não procurar a expressão “poeta bissexto” em dicionários. Depois, define como bissexto “aquele em cuja vida o poema acontece como o dia 29 de fevereiro do ano civil”. Ou seja: “bissexto é todo poeta que só entra em estado de graça de raro em raro”.

Em seguida Manuel Bandeira reproduz o que escreveu Vinicius de Moraes sobre poesia brasileira contemporânea para a revista argentina Sur, no número de setembro de 1942. Disse Vinicius:

“…poetas que nós, seus íntimos, chamamos cordialmente de bissextos – poetas sem livros de versos – bissextos pela escassez de sua produção, cuja excelência sem embaraço os coloca ao lado dos mais citados.”

Vinicius exemplificou:

“Bissexto é um Pedro Dantas cujo poema “A cachorra” passou a ser uma obra-prima da literatura brasileira. O mesmo se pode dizer de “O defunto” de Pedro Nava, uma das peças mais belas e mais sinistras da nossa poesia. Bissexto é um Aníbal Machado, escritor esporádico, em quem o verso é uma espécie de estado de graça que assoma entre largos períodos de sombra; um Dante Milano, notável pela unidade da sua forma poética, de grande pureza; um Joaquim Cardoso, cuja produção se recusa à intimidade dos que lhe são mais chegados, tão íntima quer ser; um José Auto, poeta que se tem dez poemas, terá muito, mas em quem a poesia é uma fatalidade de condição. Bons poetas que futuramente figurarão, estou certo, ao lado da melhor poesia brasileira.”

No mais Manuel Bandeira alonga-se sobre características dos poetas bissextos, chamando—nos atenção a temática que é pobre, quase sempre reduzida a dois temas: o de certa dor nos acidentes passionais e o que Mário de Andrade chamou, com tanta felicidade, de “tema da vida besta”.

A antologia organizada por Bandeira reúne várias obras de poetas bissextos. Não deixa de ser uma curiosidade uma passada de olhos no índice onde encontramos nomes que não suporíamos ligados à produção poética, ainda que de quando em quando.  Para se ter idéia fazem parte da relação: Aurélio Buarque de Holanda (mais tarde o “Aurélio” que conhecemos pelo seu dicionário), o pintor Di Cavalcanti, Gilberto Freyre, autor de “Casa Grande e Senzala”, Euclides da cunha, autor de “Os sertões”, o cronista Rubem Braga e muitos outros. Sobre Pedro Nava é interessante notar o fato de ele ter atravessado décadas na condição de bissexto, escrevendo ocasionalmente artigos na imprensa. Só em 1972 – oito anos antes de morrer – Nava iniciaria a série de publicações englobando os livros – “Bau de Ossos”, “Balão Cativo”, “Chão-de-Ferro”, “Beira-Mar”, “Galo-das-Trevas” e “O Círio-Perfeito” –  com os quais logrou traçar um painel completo da cultura brasileira no século XX.

A “Antologia de Poetas Brasileiros Bissextos Contemporâneos”, de Manuel Bandeira, foi publicada pela Livraria Editora Zelio Valverde S. A., Rio de Janeiro’, em 1946. Existe uma 2ª edição revista e aumentada, publicada em 1964 por Organização Simões (Rio de Janeiro). Nas livrarias encontra-se uma edição da obra, publicada pela Editora Nova Fronteira, em 1992. Leitura indispensável.

Da necessidade do jazz

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Se você acorda de madrugada e não consegue dormir,

Se a vida parece desinteressante e absurda a agitação do dia-a-dia,

Se a mulher que você ama não está ao seu lado, mas nos braços de outro,

Se o empréstimo do banco que você esperava não saiu,

Se o médico avisou que você tem uma doença incurável,

Se alguém que você amava morreu e não há como se conformar,

Se o melhor texto que você escreveu na vida foi engolido por um defeito no HD,

Se o telefonema que você esperava ansiosamente não aconteceu,

Se a vaga de emprego foi dada a outro,

Se você bebeu demais e deu vexame,

Se o pneu do carro furou e está chovendo muito,

Se você está parado no trânsito há mais de uma hora e não há previsão de melhora,

Se você se atrasou e perdeu o vôo,

Se você trabalha e o seu chefe é um desgraçado,

Se ninguém reconhece o sangue que você dá para sustentar a sua família,

Se o vizinho de baixo reclama de vazamento,

Se você tem muitas multas e vai perder a carteira de motorista,

Se você contou a sua vida a um psiquiatra e ele enlouqueceu,

Se você caiu na malha fina do Imposto de Renda,

Se a sua casa foi assaltada,

Se a sua consulta pelo SUS foi marcada para dois meses depois,

Se você foi preso por engano,

Se você comeu carne estragada mesmo pagando a conta alta do restaurante chique,

Se você marcou encontro com a sua namorada e ela não apareceu,

Se você acreditou no PT e votou no Lula,

Se você era fã do Michael Jackson e não aceita a morte dele,

Se o seu vídeo game favorito quebrou e não tem conserto,

Se a vizinha gostosa que trocava de roupa com a janela aberta se mudou,

Se a sua virilidade não está lá essas coisas,

Se você foi enganado por um corretor de imóveis,

Se o elevador está quebrado e você mora no décimo segundo andar, 

Se alguém confundiu você com um homem-bomba,

Se o Brasil perdeu para a Argentina,

Se você foi atingido por uma bala perdida,

Se você entrou na contramão e bateu o carro,

Se você achava que o STF fazia tudo certo,

Se você tem certeza de que o mundo vai acabar em 2012,

Se você foi reprovado no último ano da faculdade,

Se você escorregou numa casca de banana,

Se o seu time do coração foi humilhado pelo maior rival,

Se o seu carro foi roubado e o seguro não quer pagar,

Se a sua assinatura foi falsificada,

Se a televisão full HD que você comprou pifou,

Se a sua mulher quer assistir a um filme justamente na hora da final do campeonato,

Se o médico proibiu a cerveja,

Se a sua namorada não gostou do perfume que você deu a ela de presente,

Se o seu cartão de crédito foi clonado,

Se a mensalidade da escola do seu filho aumentou muito,

Se o seu apartamento está precisando de reforma,

Se o seu cunhado folgado está para chegar à sua casa,

Se a geladeira está vazia,

Se o sapato está machucando o seu pé,

Se alguém convidou você para ser padrinho de casamento,

Se o DVD pirata que você comprou não funciona,

Se você enxerga mal e perdeu os óculos,

Se a sua mulher descobriu que você assiste a filmes eróticos escondido dela,

Se a anestesia não pegou e é preciso arrancar o dente,

Se você chegou no final da festinha da escola do seu filho pequeno,

Se você tirou uma semana de férias em Fortaleza e choveu o tempo todo,

Se o café da manhã está sempre frio,

Se a crise econômica mundial se prolongar,

Se o MST invadiu as suas terras,

Se o remédio indispensável à sua saúde parou de ser fabricado,

Se a chuva acabou com a sua festa de aniversário ao ar livre,

Se os seus cabelos começaram a cair de repente,

Se a centésima nona página do livro que você está lendo está em branco,

Se a temperatura da Terra subiu muito e os mares invadiram as praias,

Se o Pré-Sal não der em nada, sax

Se o Bandido da Luz Vermelha ressuscitar,

Se as portas dos manicômios se abrirem e todos os loucos saírem às ruas,

Se descobrirem que o reverendo Jim Jones tinha razão,

Se ficar provado que o inferno é aqui mesmo,

Se você achou que ganhou na loteria, mas estava enganado,

Se você está com o saco muito cheio de tudo…

ENTÃO, OUÇA JAZZ.  O sax alto de Johnny Hodges, profundo e perfeito, levará você a um lugar onde nada, absolutamente nada, poderá atingi-lo. Lá você poderá conhecer, finalmente, a Passárgada cuja existência nos foi revelada por Manuel Bandeira.    

Escrito por Ayrton Marcondes

3 setembro, 2009 às 8:23 am

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