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Os meus medos
Aquele tio Nenê era na verdade tio de meu pai, irmão de minha avó. Sujeito sempre muito magro e falante descendia de italianos e viera do Sul de Minas, trajeto feito a cavalo, bom cavaleiro que ele era. Depois dele veio sua família: a mulher e dois filhos, que o terceiro, mais velho, morava no Rio.
De todo modo esses meus parentes abancaram-se numa casa próxima à nossa, na mesma e única rua do então vilarejo, hoje cidade com turistas e os comemorativos que fazem parte das hordas de invasores que andam por aí. Pois esse Nenê trouxe as mais terríveis histórias fantásticas as quais tinha ele muito prazer em contar. É bom lembrar que, na época, a energia elétrica da região era fornecida pela Companhia Sul Mineira de Eletricidade que, a bem da verdade, não funcionava lá grande coisa. De modo que se dispunha de iluminação fraca e muito propícia à criação de ambientes tétricos para um menino de cerca de dez anos que eu era então. Afinal e como todo mundo sabe nas sombras escondem-se os seres sobrenaturais.
O caso é que à noite, na casa do Nenê se juntavam uns tantos ao redor do fogo – fazia frio, muito frio – e ali a tradição oral rolava solta com cada um contando os seus casos escabrosos, boa parte deles envolvendo mitos conhecidos como lobisomens, capetas, sacis e outros seres imaginários que ali eram apresentados como reais e sempre ameaçadores. As melhores histórias eram sempre as do Nenê, ele proprietário da arte natural de narrar com algum enredo e recursos de gerar expectativas.
Mas, os meus medos não nasciam tanto dessas histórias que eu adorava ouvir por pura teimosia de vez que, depois, voltava a casa pela rua escura e temia ser assaltado por um desses seres estranhos. Meu maior medo sempre foi de almas de outro mundo, essas sim aterrorizantes. Minha infância foi povoada pela narrativa de fatos sobrenaturais de modo que, a partir daí, o sobrenatural passou a fazer parte da minha vida e jamais o deixei. Para isso muito contribuíram as minhas precoces leituras dos contos de Edgar Allan Poe que legaram personagens que me acompanham vida afora. Foi através de Poe que adquiri, em menino, grande temor da catalepsia, medo esse embasado no conto “Enterrado Vivo”. Quando temor me causou, anos a fio, o conto chamado “O Estranho Caso do Sr. Valdemar”, história de um homem doente que foi hipnotizado antes de morrer e ficou preso ao hipnotizador que não o deixava partir. E que horror puro e profundo naquele “Retrato Oval” que me infundiu o receio dos quadros com retratos de pessoas mortas que, naqueles idos, tinha-se por hábito pendurar nas paredes das casas.
Assim, iniciado na literatura de horror e ouvinte de relatos fantásticos desenvolvi o medo dos lugares escuros, dos corredores em cujo fim alguém do outro mundo poderia esperar por mim, das portas entreabertas, dos quartos onde dormiram pessoas já mortas, dos cemitérios onde almas vagavam madrugadas afora à espera de um momento para saírem dali e assombrar os incautos do mundo.
Já não tenho medo dos mortos, nem as assombrações me impressionam. Às vezes, quando acordo durante a madrugada e ando pela minha casa às escuras me pergunto se alguém a quem conheci e morreu não poderia de repente surgir à minha frente. Em algumas dessas ocasiões não é impossível experimentar a sensação epidérmica de alguma presença intrusa, fato evidentemente provocado por autossugestão. Ademais, confesso que não sei qual seria a minha reação caso a antiga casa de minha avó se erguesse das cinzas e eu tivesse que dormir, agora, naquela enorme e soturna sala que tanto medo me dava na infância. Quantos corpos de parentes mortos foram ali velados num tempo em que não eram muito habituais os velórios em necrotérios, isso em cidades do interior.
Por fim, destaco a importância do medo em minha formação. O contato com o sobrenatural contribuiu para a noção de relatividade da vida, a impressão de que existe algo de falso na realidade e, principalmente, para a constatação de que a incerteza é fundamental para que nos mantenhamos vivos, espécie de pacto com o imponderável que torna mais palpável o enigma da vida.
Nem só as crianças têm medo
Howard Phillips Lovecraft (1890-1937), escritor norte-americano, é um mestre das histórias de horror. Ele jamais escreveu histórias que não as de horror. Em suas narrativas aparecem imagens do subconsciente e há a utilização de símbolos relacionados a monstros e divindades ancestrais.
Segundo Lovecraft a mais forte e mais antiga emoção do homem é o medo e a espécie mais forte e mais antiga de medo é o medo do desconhecido. Para ele as histórias de horror sempre existiram e existirão porque,
“as crianças sempre terão medo do escuro, os homens de mente sensível ao impulso hereditário sempre tremerão ao pensamento de mundos ocultos e insondáveis de vida diferente que quem sabe pulsam nos abismos além das estrelas ou sinistramente oprimem o nosso próprio globo em dimensões perversas que somente os mortos e os dementes podem vislumbrar”.
Sempre fui um aficionado das histórias de horror, aquelas que começam com uma situação mais ou menos banal e evoluem para uma atmosfera sufocante, realmente irrespirável e desafiando a lógica comum. Em síntese, histórias que incorporam o sobrenatural ao cotidiano. São exemplos desse tipo de narrativa os romances de Lovecraft e os contos de Edgar Allan Poe (1809-1849). Diferentes deles são certas histórias que abusam do expediente macabro baseando-se mais na surpresa e no susto. Infelizmente, nos últimos anos o cinema tem produzido obras dessa natureza com o uso abusivo de clichês cuja única intenção é a de asssustar através de exageros pictóricos, imagens deformadas e situações macabras. Trata-se de um horror sem inteligência cujo maior intuito é estimular sensações semelhantes às experimentadas em situações de perigo real. Portas que se abrem de repente, mulheres que acordam durante a noite e andam em ambientes escuros, monstros de todos os tipos, pesadelos que se tornam reais, existe toda uma parafernália de métodos impactantes com a função de levar o espectador ao grito diante de algo que se figura a ele insuportável.
Por que escrevo sobre isso? Em primeiro lugar para lembrar aos leitores que existem nas livrarias excelentes obras de literatura de horror que merecem ser lidas. Em segundo porque noite dessas ouvi um professor de filosofia falar, num programa de televisão, sobre a relação entre o escuro e o medo. Se bem entendi a colocação do professor, para ele no mundo menos iluminado do passado existiria mais medo que no mundo atual.
Não sei se isso está correto. A piada sobre o fato de que a luz elétrica reduziu a atividade dos fantasmas tem lá o seu sentido e graça. Entretanto, o verdadeiro horror prescinde do escuro embora este o acentue. Situações fantasmagóricas podem muito bem acontecer às claras. Excluída a possibilidade de ladrões, quem não se incomoda com ruídos estranhos e inexplicáveis dentro de casa a qualquer hora do dia ou da noite? Objetos que caem sem que alguém os toque não causam arrepios? E as portas que batem, aparentemente sem a ação do vento? Os relógios que despertam de madrugada sem que tenham sido programados para isso? E os aparelhos eletrônicos que ligam sozinhos, de repente? Que dizer de pressentimentos que se confirmam? E sobre os sonhos da morte de pessoas que acaba acontecendo?
Quanto a mim, fico com a famosa frase: não creio em fantasmas, mas que eles existem, existem. Quando menino passava férias na casa antiga de minha avó, imóvel rico em histórias sobre as gerações de moradores que ali precederam a minha família. A maioria dos antigos moradores morreu naquela casa e foi velada na grande sala onde, anos depois, nos reuníamos após o jantar. Esses mortos estiveram presentes na minha infância e, ainda menino, tive medo deles. Certa ocasião, decorridos muitos anos e sendo eu já adulto, retornei àquela casa e dormi em um de seus quartos. Embora eu já não acreditasse em fantasmas, não posso dizer que dormi sossegado. Se bem me lembro, naquela noite eu me esqueci de apagar a luz do abajur…
A velha casa de minha avó foi derrubada por uma incorporadora que usou o terreno para construir um prédio de apartamentos. Muita gente mora nesse prédio e não há notícias de que os falecidos moradores tenham perturbado o sossego de ninguém.