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Memórias que não se apagam
Você que lê jornais revistas deve ter reparado como volta e meia articulistas e cronistas referem-se ao passado em seus escritos. De vez em quando os textos tornam-se confessionais, convidando o leitor a imersões em seu próprio passado.
Há poucos dias li duas referências interessantes a isso em artigos diferentes. Num deles a cronista relatava que fora convidada a se lembrar do melhor momento de sua vida. No outro um articulista referia-se à lembrança de momentos de sua infância.
Não há como isentar de saudosismo as propostas anteriores. O interessante é que ao tentar eleger momentos do passado, com eles retornam pessoas de outros tempos e até épocas soterradas em nossas memórias. Torna-se possível, por exemplo, reerguer casas e prédios que já não existem, refazer em seu aspecto original ruas hoje bastante mudadas e, principalmente, fazer de novo viver mundos desfeitos pelos quais passamos com o todo o séquito de ideias pelas quais nos empenhamos. Aliás, nesse sentido, não deixa de ser interessante reviver personagens que fomos e até rir de posições que assumimos, às vezes vão voluptuosamente.
Tive um companheiro de trabalho de quem me tornei devedor por tantas coisas que me ensinou. Era ele aparentemente um sujeito contido, mas por baixo daquela grande calma escondia-se uma alma em constante conflito e temperamento tempestuoso. Nada disso, entretanto, se revelava nos contatos diários com ele, sempre recluso em seu mundo e afável. Tinha ele um passado nebuloso no qual se sobressaia a participação em movimentos de oposição à ditadura militar. Na verdade o meu amigo nunca me falou abertamente sobre o assunto, mas suas lembranças eram em sua maioria ligadas ao período de resistência e ação no qual se empenhara.
Aconteceu de certa vez eu perguntar ao meu amigo quais seriam a lembranças mais marcantes de sua vida. Respondeu-me ele que, na verdade eram duas. A primeira delas referia-se ao noivado que encetara com uma moça, namorada dele desde a infância. Pois às vésperas do casamento, sem razões plausíveis, desistira de tudo, entregando-se a noiva ao desespero e grande sofrimento. Disse-me ele que mesmo anos mais tarde ainda sentia vergonha daquela situação. Relatou muitas vezes acordar de madrugada com a sensação de que seu tresloucado ato acabara de ocorrer, sentindo em toda a intensidade as consequências do problema que gerara.
A segunda lembrança mais marcante acontecera num hospital, quando da morte da mulher dele em consequência de acidente automobilístico. Na ocasião, em razão de sua atividade política anterior, ele mudara de nome de modo a esconder sua verdadeira identidade. Marcara-o muito o fato de sua mulher, em seus últimos momentos, chamá-lo pelo nome falso com intenção de protegê-lo. Esse ato que sobrepôs a intimidade de uma despedida à necessidade de segurança do marido, naquela altura certamente procurado por algo que teria feito, revestiu-se de grandeza, tornando-se inesquecível.
Lembranças boas? Não, ele tinha poucas e, segundo disse, em nada especiais, excetuando os momentos de alegria pelo nascimento dos filhos.
Lembrei-me desse antigo companheiro ao ler sobre pessoas que se perguntam sobre momentos do passado. Homem de grande inteligência ele morreu, há alguns anos, em trágica circunstância que não vale a pena mencionar.
Retratos
- Fiu,fiu,fiuuuuu.
O menino assovia avisando que o jogo deve parar porque está na hora do trem da Central do Brasil. As crianças correm; um rapazote espigado pega a bola e a segura debaixo do braço com ares de proprietário.
Agora o trem apita e logo a locomotiva aparece puxando os vagões. As crianças estão sentadas na calçada esperando o trem passar.
Logo depois o jogo recomeça e é a vez do sorveteiro gordo passar no meio da criançada empurrando o carrinho.
Faz calor. O sorveteiro segue lentamente até que, de repente, curva-se e cai. Dois homens que passam o ajudam a levantar-se. Um dos homens acompanha o sorveteiro até casa dele, ajudando com o carrinho.
Mais tarde o sorveteiro vai ao médico. Tem os pés inchados e o médico avisa que é problema do coração. A solução é tratar-se em São Paulo, no Hospital das Clínicas.
O sorveteiro pega o trem da manhã para São Paulo. Ninguém vai com ele à estação, nem mulher, nem filhos. No meio da viagem os pés incham demais: ele tira os sapatos e adormece. Quando acorda verifica que alguém roubou os seus sapatos. Descalço, ele desembarca na estação rodoviária e desse modo se apresenta no Hospital das Clínicas.
A última notícia sobre o sorveteiro é a do roubo dos seus sapatos. Um mês depois uma cunhada dele vai a São Paulo procurá-lo no Hospital das Clínicas. Lá é informada de que o cunhado morreu e seu corpo está no IML à espera alguém que o reclame.
Lembrei-me desses fatos hoje de manhã ao encontrar, em meio a velhos papéis, duas fotos. Numa delas vêem-se meninos sentados na calçada esperando a passagem do trem. Na outra está um homem gordo e sorridente junto do seu carrinho de sorvetes.
O sorveteiro era meu tio; a cunhada que foi procurá-lo, minha mãe. Do sorveteiro e dos meninos sentados na calçada restaram essas fotos que tornei a guardar e talvez nunca mais tenha ocasião de revê-las.
As memórias se apagam, lentamente, como as fotos que se desbotam. Do mesmo modo desaparecemos: devagar, desbotando, para sempre.