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Human Nature
28 de julho de 1985, Theatre St. Denis, Montreal, Canadá. Miles Davis começa a tocar no seu trompete a música Human Nature, de Michael Jackson. É acompanhado por Bob Berg no saxofone, Robert Irving III no sintetizador, John Scofield na guitarra elétrica, Daryl Jones no baixo elétrico, Steve Thornton na percussão e Vincent Wilburn na bateria.
Miles é considerado um dos mais influentes músicos do século XX, tendo passado pelo bebop, pelo cool jazz, pelo jazz modal e pelo fusion. Nos últimos tempos tem avançado, solitariamente, para uma combinação entre o jazz, o funk e a música pop o que tem valido a ele críticas por não estar tocando o verdadeiro jazz. Mas ele está no auge de sua popularidade e buscando novos caminhos para chegar ao seu público.
Miles tem agora 59 anos de idade e está acima de tudo isso. Na verdade o grande Miles alcançou o invejável pórtico no qual pode tocar o que quiser. É dentro dessa perspectiva que inicia os seus solos de Human Nature. A partir daí o que se segue é impressionante. Lá está Miles Davis com seus óculos escuros, vestido com uma estranha e bela roupa negra que apresenta símbolos desenhados. Ela anda no palco entre músicos e instrumentos, curvado sobre o seu trompete vermelho que emite notas profundas e maravilhosas.
Miles está no palco e, de repente parece não estar. Na medida em que se entrega à melodia ele caminha dando a impressão de que atravessa regiões desconhecidas, avançando cada vez mais no insólito e levando-nos com ele. Homem e trompete tornam-se um só corpo que vibra em notas musicais apaixonantes. A essa altura Miles prendeu-nos com toda a sua magia e nada pode livrar-nos da imantação a que estamos submetidos, exceto o momento em que a alegoria se desfaz e Miles para de tocar.
Não é um bem um homem aquele que toca no palco do Theatre St. Denis, em 1985. Há no músico que vemos e ouvimos uma parceria com a divindade, o afastamento pouco nostálgico da condição humana, a transcendência do semi-Deus que governa os sentimentos e nos encanta com a sua música.
Já não importa mesmo o que Miles toque. Ele segura o trompete como um gato retém a sua presa, com movimentos delicados e precisos. Seus dedos se movem sobre os botões como gatilhos que disparam sobre nós sonoridades inesperadas.
Miles Davis morreu em 1991, mas continua tocando, revelando-nos muito sobre a as possibilidades da natureza humana enquanto sopra em seu trompete as notas da música de Michael Jackson.
PS: impressões recolhidas ao assistir a apresentação de Miles Davis, incluída no DVD “Miles – Live in Montreal”.
Em tempos de Show-funeral
Rapaz, eu não imagina que viveria para ver isso. Pois o cadáver de Michael Jackson, morto há alguns dias continua insepulto, à espera que se decida a melhor forma de despedirem-se dele.
Pelo lado do morto, tudo bem: acabado está e se algo ainda se deve a ele na condição de cadáver é o respeito aos mortos. E uma certeza: o show-funeral será na terça-feira.
Por hábito sempre penso nos mortos dentro de seus caixões e sendo baixados à sepultura, quando não cremados. Talvez por isso toda essa celeuma em relação ao enterro de Michael Jackson me pareça fora de propósito. Os dias passam e uma constelação de repórteres permanece na frente da casa do cantor, esperando por qualquer migalha de informação. Às vezes aparece alguém da família Jackson, parecendo andar numa ribalta de onde desfere duas ou três frases rapidamente divulgadas por todos os órgãos de informação. Por trás dos repórteres milhares de fãs consumidores de novidades empolgam-se com narrativas fragmentárias sobre a morte do cantor, dignas de telenovela. A morte de Jackson vai sendo esticada, estigmatizada, gera lucros com a permanência do morto na mídia e o retorno de seus discos ao topo das paradas. A morte de Jackson tornou-se, portanto, um negócio lucrativo.
E agora isso do show-funeral: anuncia-se a despedida de Jackson dentro do estádio do Los Angeles Lakers, com capacidade para 20000 pessoas. Os ingressos serão doados a fãs por sorteio e o funeral transmitido por telões aos que ficarem do lado de fora. É possível a participação de artistas e estuda-se o custo do evento. No centro dessa movimentação toda, Michael Jackson, o morto, esperando a hora de finalmente seguir viagem e desaparecer fisicamente.
A teatralidade das exéquias do cantor só poderia mesmo ser obra de norte-americanos, especialistas que são em megaeventos. Faz parte do caráter do grande povo do norte essa paixão pelo que é grande, pelo exibicionismo que demonstra a força inerente ao país e o seu domínio e influência sobre os demais governos. Pouco importa se por vezes abrem-se brechas nas defesas do império norte-americano: como nos filmes, o império contra-ataca e seus interesses quase sempre prevalecem.
Entender o caráter norte-americano e seu modo de ser é tarefa espinhosa. Joaquim Nabuco serviu como embaixador brasileiro em Washington entre 1905 e 1910. Ainda no século XIX Nabuco publicou o texto intitulado “Influência dos Estados Unidos” que faz parte de seu livro “Minha Formação”. Nesse texto o futuro embaixador realça a influência das origens anglo-saxônicas sobre o caráter norte-americano. Diz Nabuco sobre os norte-americanos:
“O fundo anglo-saxônico revela-se, aumentado ou diminuído, na coragem e tenacidade, na dureza e impenetrabilidade, no espírito de empresa e independência da raça, também na brutalidade e crueldade do instinto popular, nas rixas de sangue, na bebida, nos linchamentos, na sede insaciável de dinheiro, e também, noutros traços, na necessidade de limpeza física e moral, no espírito de conservação, na emulação e amor-próprio nacionais, na religião, no respeito à mulher, na capacidade para o governo livre”.
Do texto de Nabuco podem ser pinçados aspectos ainda hoje facilmente identificáveis no caráter norte-americano. Esses aspectos contribuem para o entendimento do modo de ser daquele país que se esmera em nos surpreender através de criações tantas vezes inusitadas, como esse show-funeral que se prepara para o falecido Michael Jackson.
As novas mídias
Mande notícias do mundo de lá – diz a música de autoria Milton Nascimento e Fernando Brant. Notícias chegam, impactam, envelhecem e passam. Em curto período de tempo fomos bombardeados pela queda do Airbus no vôo 447, a crise do Irã, a crescente corrupção do Congresso brasileiro, a morte de Michael Jackson e milhares, milhares de outras notícias menores que dançam nas páginas de jornal e revistas além de ocuparem enorme espaço nos sites da Internet.
Dos jornais que chegavam da Europa através de navios às velozes notícias trazidas pelo cabo submarino no século XIX, pulamos para a instantaneidade dos meios de comunicação atualmente verificada. Mais interessante é o fato de as mídias disponíveis abalarem o monopólio de informações até agora de posse de grandes empresas de comunicação ou mesmo governos. O caso do Irã onde, apesar da restrição governamental, notícias e fotos sobre a crise são divulgadas por pessoas comuns, via Twitter ou outros meios, é só mais um na nova história que está sendo escrita sob o ponto de vista de observadores não credenciados.
De repente, acontecimentos nos são mostrados por informantes ocasionais que muitas vezes se limitam à transmissão pura e simples de fatos, sem crítica e até mesmo sem grande envolvimento. A febre da fotografia digital, a possibilidade de filmar qualquer pessoa ou acontecimento com um simples telefone celular e enviar o arquivo na hora sob a forma de torpedo instala uma nova fase nas relações humanas.
Não por acaso temos sido acossados por informações sobre fechamento de jornais e revistas e mesmo os livros estão sendo ameaçados por versões eletrônicas. As novas gerações estão à beira de substituir o prazer de abrir e folhear as páginas de um livro por um simples click de mouse ou o aperto de um botão.
Geram-se assim novos homens e uma humanidade que vai se distanciando de si mesma. Se isso é bom ou mau? Ao futuro pertence a resposta. Quanto a mim, só peço que não me seja tirado o prazer de ler livros impressos no bom e velho papel. Ontem mesmo reli partes daquela biografia de Charles Baudelaire escrita por Jean Paul Sartre. Esse livro pertenceu à minha família e hoje faz parte da minha pequena biblioteca. O curioso é que um seu antigo leitor deixou nas margens varias anotações sobre o texto. Esse leitor que tão bem conheci morreu há muito tempo, mas suas anotações me permitiram contato póstumo com ele. Não pude concordar com tudo que deixou escrito com sua letra miúda, mas no geral aceitei as suas ponderações.
Foi assim que nos reencontramos, eu e o falecido, alta madrugada, nas margens de um velho livro.
Michael Jackson
Michael Jackson cantou e dançou entre o real e o imaginário. Pertencia ele a um reduzido grupo de ícones do show business os quais simplesmente não podem ser de verdade. De fato, no mundo real parecem inexistir condições para a realização das várias figurações que Jackson assumiu ao longo de sua vida. Basta-nos lembrar que aos nove anos de idade ele já era uma estrela e observar as fases de sua ascensão para concluir: ele não poderia ser de verdade, gente como nós, de carne e osso.
Talvez por isso sua momentânea ausência esteja sendo tão chorada pelos seus fãs. Momentânea? Ora Jackson morreu, é para sempre, dirão. Pois o caso do rei do pop é diferente: estávamos tão distantes de sua existência real e física que a morte nada mais faz do que abalar, temporariamente, as imagens do homem que canta e dança, fazendo o delírio das multidões.
Leio num jornal que Jackson morria na medida em que perdia a sua cor. Não é verdade. Jackson sempre foi um curioso caso de hibridização. Não seria preciso assistir ao desfecho de sua vida que hoje se nos apresenta para conhecê-lo. Ele não pertencia a esse mundo, à espécie comum que anda por aí. Em seu corpo e espírito travavam-se mutações contínuas fazendo dele um ser sem partido, mistura continua de dois lados, híbrido de branco e negro, híbrido de homem e mulher, talvez nada mais que uma experiência natural, um avanço no sentido de converter o homem em arte.
Sendo assim, a realidade nada mais foi para ele que uma mistificação. O “tudo pode” do mundo imaginário e o requinte do traçado impressionista a que entregava o seu corpo contrastava com a exigência de coerência de um mundo cartesiano, moldado entre eixos de cálculos que se querem precisos para acomodar a variedade da natureza humana.
Vai daí que Jackson não poderia dar certo. Mágico e oráculo da ilusão, Jackson digladiou-se com a imposição de uma realidade para a qual não foi feito ou preparado. Bem que tentou compor-se com ela exacerbando-se em generosidades que contrastavam com erros primários determinados por seus instintos básicos, impossíveis de afogar. A visibilidade de ídolo contribuiu para que os olhares nunca o deixassem em paz e o flagrassem em desvios mínimos nos quais, finalmente, revelava-se a sua face humana.
Foi, assim, um incompreendido. Apaixonou multidões com sua arte, fez escravos, tornou-se rei inconteste. Obrigado a viver quando deveria, talvez, ter sido um anjo – bom ou mau que interessa? – não soube e nem pode compor-se com o mundo. Andou por aí desgarrado, sublimando-se em movimentos rítmicos, outro Nijinsky só que com outra loucura.
Dizem por aí que Michael Jackson morreu. Não acredito: seres imaginários não morrem. Eles vivem nos vídeos, comandando-nos através de controles remotos.