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Chuva
Estrada interditada. Informa-se sobre a queda de barreira. Não há previsão para liberação do trânsito. Dentro do carro, em meio a gigantesco congestionamento, o rádio surge como único companheiro. Com ele o motorista dialoga, ouvindo informações e, talvez, um pouco de música. A chuva não dá tréguas. O ruído das gotas, martelando na lataria do carro, incomoda. Pelo para-brisas vê-se um pedaço do céu, escurecido pelas nuvens carregadas. No rádio uma repórter avisa sobre alagamentos. Casas com água na meia altura da parede, famílias que perderam tudo. A tempestade realça a miséria. Autoridades atribuem a desgraça ao volume excessivo de água caindo do céu em período curto. Explica, mas não justifica. Um político de oposição berra que, entretanto, em períodos mais secos nada se faz para, pelo menos, minimizar os efeitos das chuvas. Deslizamentos de morros, casas vêm abaixo. Pessoas soterradas. A cada hora anuncia-se a descoberta de mais uma vítima fatal. Um morador conta sobre o momento em que o chão do lugar onde mora tremeu. As árvores tremeram. Um casal de idosos, pressentindo a catástrofe iminente, decidiu sair de casa. Os dois estavam na escadaria quando a terra cedeu e veio abaixo. Foram colhidos pela avalanche. Até agora, diz o homem, os corpos não foram encontrados. O prefeito da cidade atingida vem a público para esclarecer sobre medidas de socorro aos que tiveram que sair de suas casas. Locais preparados para receber pessoas, igrejas… Muita gente, em desespero, agradece por pelo menos terem se salvado. A repórter volta para noticiar a morte de dois bombeiros. Tentavam salvar uma criança quando soterrados por um deslizamento. São heróis - repete o radialista de plantão no estúdio da rádio.
O trânsito segue parado e não há perspectiva de que venha a ser liberado. É quando a memória traz de volta um conto de Julio Cortázar cujo título é “A autoestrada do Sul”. No retorno a Paris, após o feriado, um grande congestionamento. Horas parados no mesmo lugar os viajantes descem dos carros e travam conversas. Um deles trava contato com a motorista do carro ao lado do seu. Nas horas que passam entre os dois se estabelece uma promessa de futuro relacionamento. É quando o trânsito reabre. As pessoas correm para seus carros e inicia-se o retorno a Paris. Em vão o homem tenta seguir o carro da mulher com quem se encontraria depois. Ele a perde, não pegou se endereço, tudo acabado.
Aqui, entre tantos carros, me pergunto se num deles não estará alguém como eu, alguém em busca de alguém. Tento ver pelo vidro molhado se nalgum carro próximo não estará uma mulher sozinha, alguém com quem eu pudesse entabular conversa que resultaria num encontro futuro, quem sabe ainda nesta noite. Mas, nada. Nada acontece exceto a chuva que não para. Não retorno de um feriado prolongado, não estou na autoestrada que conduz a Paris, nem há uma mulher com quem conversei e poderemos nos encontrar mais tarde. Só há esse enorme silêncio, cortado pelas gotas de chuva.