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As cinzas de Marlon Brando
Vi pela televisão um dos capítulos de uma série sobre a vida de Marlon Brando. Ô gente, estou falando de Marlon Brando, não de qualquer um que anda por aí. Marlon foi desses caras que contribuiu para que certos estereótipos tenham se consolidado, incorporando-se ao imaginário popular.
Marlon foi mitificado em vida, situando-se em patamar onde a realidade e a ilusão se confundem. A esse estado especial foi levado pelo seu carisma sem limites e dotes especiais de representação. Nos filmes ele sempre esteve acima dos demais atores, roubando cenas e conferindo grandeza à arte de representar. Marlon foi o cowboy Rio no filme “A Face Oculta”: nenhuma outra possibilidade de presença física e psicológica haveria para a personagem Rio, senão aquela que a ela foi dada por Marlon. O mesmo aconteceu em relação às personagens vividas por Marlon em “Sindicato de Ladrões”, “O Poderoso Chefão”, “Queimada” e tantos outros filmes.
A um homem assim não se permite vida própria isenta de encantamento. Daí não ser preciso mostrá-lo dentro de sua realidade pessoal, vivenciando os problemas dos quais nenhum mortal escapa. Torna-se desnecessário apresentá-lo velho e gordo, cercado de depoimentos de pessoas próximas sobre os seus últimos e tristes dias. Esse desmascaramento, o esforço de desmistificação, o desnudamento proposital de um ícone de gerações torna-se gratuito, indesejável, espécie de lavagem de roupa suja em público como se a intenção fosse a de dizer a todos que amaram e amam Marlon Brando: eis o homem, eis aí o vosso ídolo, olhem bem para os seus pés de barro.
Foi exatamente isso que a série sobre Marlon Brando logrou consumar, conduzindo-o da glória à decrepitude e desta à morte através de cenas e depoimentos que nada acrescentam à trajetória do ídolo. Que o deixassem em plena glória, nada mais que isso.
Talvez o melhor da série tenha ficado para as cenas finais quando amigos se empenham em jogar as cinzas do ator no deserto, satisfazendo seu último pedido. Era um dia de muito vento de modo que as cinzas de Marlon foram jogadas através da janela de um jipe, misturando-se à grande nuvem de grãos de areia.
Essa última imagem de Marlon, a do homem convertido em cinzas levadas pelo vento, o seu desaparecimento silencioso e irremediável num lugar ermo e rústico, sem epitáfio, certamente representa a melhor saída de cena para aquele que foi um ator entre os atores: o homem Marlon deixa de existir, some no deserto, já não podemos encontrá-lo em nenhum lugar exceto atuando nos filmes, no apartamento juntamente com Mia Farrow em “O último tango em Paris”, provocando uma revolução em “Queimada” ou chefiando a Máfia em “O Poderoso Chefão”.
É assim que Marlon Brando deve permanecer para todos nós que o amamos e continuamos com a ilusão de que talvez as cinzas lançadas no deserto não sejam as dele, talvez tudo não passe de mais um truque de cinema porque Marlon pode bem estar escondido por aí, afinal um ídolo de verdade simplesmente não morre, ele apenas se disfarça e nos engana para não ser reconhecido.