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Vigiando o trânsito
Comprou um apito, vestiu um paletó surrado e foi para a esquina dirigir o trânsito: sinal fechado, apitos, aviso aos pedestres para atravessar; sinal aberto, apitos, mão ao alto proibindo a travessia de pedestres, carros seguindo pela avenida.
Era um mulato mais para magro, cabelos grisalhos, barba por fazer, apito vermelho na boca, desses de brinquedo. Esteve ali durante algumas horas, absoluto, mandando no trânsito, regulando o fluxo. As pessoas o viam, sorriam, fingiam que obedeciam, na verdade seguiam o ritmo dos sinais.
Às três da tarde uma senhora que atravessava a rua deixou cair um pacotinho. Pressuroso o homem do apito correu sem perceber que o sinal abrira. A meio caminho o carro grande o colheu com grande impacto.
Estava no meio-fio quando passei, estendido sobre o asfalto e coberto por folhas de jornal. Perto dele uma enorme poça de sangue emprestava à cena o tom escarlate da desgraça ocorrida.
Uma mulher de cerca de 60 anos dizia a outra que ele era um sujeito bom, gostava de ajudar. Um velhote que presenciara o acidente repetia sobre o perigo das ruas nos dias de hoje. Um policial desviava o trânsito, um fotógrafo registrava a ocorrência. Do outro lado da avenida o movimento na porta do supermercado era o de sempre para o mesmo horário.
Morreu assim, incógnito, sem nome nem nada, vigiando o trânsito. No fim da tarde choveu. O sangue foi parar no bueiro, as pessoas continuaram a atravessar no verde e os carros a correr pela avenida.
É provável que agora, nove horas da noite, ninguém mais se lembre do homem atropelado e morto defronte o supermercado. A vida tem disso, de vez em quando arranja um acidente e sacrifica alguém, talvez para avisar-nos sobre a sua brevidade e o modo como seremos rapidamente esquecidos.