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Os mortos
São eles, os mortos, que não me saem da cabeça. De tempos para cá me pego lembrando de pessoas que já morreram. Não são desconhecidos. Trata-se de gente com quem convivi, algumas delas durante muito tempo. Eu as surpreendo em plena atividade, tal como se ainda estivessem por aí. De repente, entre uma e outra coisa do meu dia-a-dia, recordo-me de imagens de outro tempo nas quais essas pessoas surgem envolvidas em acontecimentos que permearam as vidas delas. Não importa se são momentos alegres ou tristes, problemáticos ou não. O que me volta é a essência de seres do modo como foram, agindo como se a vida fosse eterna e a morte - que um dia os levou - jamais viesse a acontecer.
As pessoas do passado, mesmo já mortas, acreditam na eternidade das suas vidas. Que fique bem claro, acreditam através de mim. Elas continuam vivas na minha memória e isso confere a elas a agilidade dos encarnados, circulando por aí dentro de um mundo desfeito mas, que para elas mantém-se intacto. É assim que vejo meu pai escrevendo os seu discurso, minha mãe sempre atarefada, a parente que trocava sempre de acompanhantes, o vizinho que enlouqueceu, a tia que via assombrações, o tio que não tinha sorte, o primo que deixou-se roubar num trem perdendo a urna na qual seguiam os restos do meu avô, o irmão que fugiu com a mulher do circo, o Chico que só falava de mulher, o padre que tinha amantes, tanta gente, meu Deus!
Pois eles continuam exatamente como sempre foram, laboriosos em suas artes, muitas vezes patéticos, tantas outras sinceros, benevolentes, maldosos, calmos, irritadiços, nervosos, enfim portadores de características próprias, indissociáveis que os caracterizavam como indivíduos plenos e ativos.
Pois é nessa ligação da morte que se prossegue em vida na memória que me fio para dizer que talvez aos vivos lhes pareça que jamais deixarão de existir dado que deixam-se rastros nesse mundo, sinais que atravessam gerações e resistem. Talvez por isso carreguemos conosco essa sensação de eternidade da vida, agindo como se nenhum fim nos esperasse, travando luta sem quartel contra a passagem do tempo, enganando-nos conscientemente sem qualquer prurido. Talvez também pela mesma razão eu reveja aos que conheci no passado em plena atividade, atuando com a energia de sempre, vistosos, orgulhosos da própria força, tão convictos de suas certezas, tão sérios consigo mesmo, dando-se muitas vezes a importância desmedida que não chegaram a merecer. Talvez.
Assim se refazem mundos desfeitos e vidas terminadas continuam a acontecer. Comigo tem sucedido assim, a cada vez o mundo dos mortos me parece mais real que aquele em que vivo e o presente nada mais vai me parecendo que uma simulação do passado.
Tenho pensado que talvez eu esteja mais próximo do que imagino em me tonar um deles, membro dessa gente que sobrevive nas memórias, pessoas que surgem de repente, sem avisar, numa esquina, em qualquer lugar, intrometendo-se na realidade dos dias, sem qualquer cerimônia, mortos não convidados que insistem em nos acompanhar.