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Esquartejamentos
Tínhamos um professor de Medicina Legal que era um sujeito muito interessante. Nas aulas teóricas ele projetava slides com os quais ilustrava os conceitos que ensinava. O diabo eram mesmo esses slides. Tratava-se de uma coleção de coisas horríveis, fotos de acidentes e crimes tendo presentes as vítimas no estado em que tinham ficado. Nunca me esquecerei de um homem atropelado na Via Dutra sobre cujo corpo passaram vários veículos. A redução do corpo a uma massa disforme, um monte de carne com partes irreconhecíveis era dessas coisas a não serem vistas tal a dimensão do horror que causava.
Mas, o nosso professor caracterizava-se pelo seu fino humor. Finíssimo humor, aliás. Acontecia sempre após uma série de slides muito desagradáveis de se ver que ele projetar a imagem de uma bela mulher seminua. O detalhe é que ele a apresentava com o mesmo tom de voz e naturalidade dos demais slides. Tudo muito natural, portanto. Mas, é de se lembrar de como aquelas imagens de mulheres nos traziam de volta ao mundo das coisas bonitas, contribuindo para dissipar o mal estar que os demais slides causavam.
Certa vez o notável mestre nos contou sobre um crime no qual ele fora chamado para fazer perícia. Disse ele ter sido levado a um pequeno apartamento no centro de São Paulo onde um homem mantivera relações sexuais com uma prostituta. Ao fim do encontro o homem acabou matando a prostituta e depois se desesperou porque não sabia como se livrar do corpo. Foi quando teve a ideia de esquartejar o cadáver e livrar-se das partes jogando-as na privada. Ao fim de algumas horas nessa tétrica empreitada e já coma privada entupida o assassino largou tudo como estava e fugiu. Como perito coube ao nosso professor o exame do corpo esquartejado e das condições em que o crime fora perpetrado. Obviamente tinha ele slides que mostravam tudo o que encontrara e exibiu-os com a naturalidade de sempre, obrigando-nos em alguns momentos a fechar os olhos diante de tanto horror.
Lembrei-me do caso da prostituta esquartejada ao ler hoje sobre um esquartejamento em São Paulo. O caso agora esclarecido vinha sendo investigado e noticiado, atraindo interesse dos leitores de jornais. Há algum tempo foram encontrados em lugares diferentes da cidade partes de um corpo humano que mais tarde descobriu-se pertencerem a uma mesma pessoa. A notificação do desparecimento de um motorista conduziu as investigações à conclusão de que as partes do corpo encontradas pertenciam a ele. Seguiu-se a informação de que o motorista tinha uma prostituta como amante. Só agora foram presas três prostitutas que confessaram ter matado o motorista. Segundo as mulheres o assassinato deveu-se aos maus tratos infligidos pelo motorista à amante. Vingança, portanto. Depois do crime seguiu-se o esquartejamento realizado pela amante e a distribuição das partes no centro de São Paulo. A cabeça, por exemplo, foi encontrada na Praça da Sé.
O esquartejamento do motorista me devolveu o mal estar que senti na aula do meu professor sobre a prostituta assassinada. Hoje, como naquela ocasião, fiquei pasmo com a frieza com que pessoas se aninam a esquartejar um cadáver. Trata-se de um degrau abaixo do nível mínimo de civilidade a que estamos habituados. O esquartejador passa a fazer parte de um sistema de horror aquém da capacidade de discernimento dos seres humanos comuns. Por outro lado é de se imaginar o sofrimento da amante que maltratada não encontrou outra saída que não a de livrar-se do violento amante.
Naqueles slides coloridos do professor predominava o vermelho. Era sangue por toda parte, nas paredes, no chão. O assassino acabou sendo preso e conclui-se que havia matado a mulher porque a mãe dele também fora prostituta. Vingar-se da mãe matando e esquartejando a pobre mulher, esse o motivo de seu crime.
Nem sempre o mundo em que vivemos se mostra compreensível.