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Muito século XIX
A prefeitura de São Paulo rejeita bustos - mesmo por doação - para serem colocados em lugares públicos, alegando que elas são “muito século XIX”. Mas, o que vem a ser esse “muito século XIX”?
A pergunta é interessante e, para começo de conversa, nos obriga a delimitar o século XIX. Os historiadores consideram que o século XIX é o período compreendido entre as guerras napoleônicas (1814) e o início da Primeira Guerra Mundial (1914). Como se vê, pelo menos sob o ponto de vista histórico, os 100 anos do século não se enquadram no esperado “de 1800 a 1900”. O fato é que a Grande Guerra provocou uma enorme ruptura em tudo aquilo o que o século XIX consagrara como modo de vida.
O XIX é sempre lembrado como “o século das revoluções”, dada a frequência de revoltas, levantes e guerras civis que aconteceram no continente europeu. Grande parte desses movimentos se explica pelo confronto entre os poderes estabelecidos e as forças contestadoras de oposição. São revoltas e revoluções influenciadas pelo liberalismo e ideias nacionalistas. Na América, em especial no Brasil, trata-se de um período de grandes transformações políticas, na verdade iniciadas, em 1808, com a chegada de D. João VI. A partir daí tem-se a independência, em 1822, o primeiro e o segundo reinados, a Proclamação da República, em 1899, e os governos republicanos até 1914 quando se considera, historicamente, o fim do século. Verificou-se, nesse período, a consolidação da nação.
Mas, o século XIX também foi a período em que se verificou a expansão do capitalismo com consequências sobre o modo de vida. O crescimento da indústria, o impacto da tecnologia e das invenções influiu no cotidiano das pessoas. Obviamente, no Brasil, país periférico, as coisas se passaram mais lentamente, embora o afluxo de ideias movimentasse a elite pensante do país. É de 1870 o famoso texto escrito por Silvio Romero falando sobre as ideias que esvoaçaram sobre os intelectuais da época:
“Um bando de ideias novas esvoaçou sobre nós de todos os pontos do horizonte. Positivismo, evolucionismo, darwinismo, crítica religiosa, naturalismo, cientificismo na poesia e no romance, folclore, novos processos de crítica e de história literária, transformação da intuição do direito e da política, tudo então se agitou e o brado de alarma partiu da Escola do Recife”.
O fato é que a revolução industrial e científica observada a partir da segunda metade do século XIX afetou o modo de pensar, influindo decisivamente na arte onde a tendência passou a ser de rompimento com o passado. Nomes como os de Rodin, Manet, Monet, Van Gogh e Paul Gauguin estão ligados a uma época na qual triunfam o realismo, o impressionismo, a Arte Nova e o simbolismo. Rompe-se com o “belo acadêmico” e o artista passa a testemunhar o mundo em que vive, deixando para traz o romantismo e o academicismo.
No Brasil, em 1816, chega a Missão Artística Francesa para fundar a Academia Nacional de Belas Artes. Os professores franceses ensinam a seus alunos os conceitos e fundamentos da tradição neoclássica francesa. É assim que o estilo acadêmico neoclássico afirma-se no país com a produção de obras que privilegiam o belo, o equilíbrio, temas heroicos etc. Nomes como os de Victor Meirelles e Pedro Américo se destacam.
Também neoclássica é a escultura brasileira do período, nascida dos ensinamentos da Missão Artística Francesa na Academia Nacional de Belas Artes. Os princípios neoclássicos reproduzem-se na escultura: clareza, ordem, equilíbrio e propósito, austeridade e fundo moralizante. Destaque para Rodolfo Bernardelli, escultor de bustos de personalidades, monumentos e obras tumulares. É dele a estátua de D. Pedro I que está no Museu Paulista, o Monumento de Carlos Gomes em Campinas e as estátuas do Teatro Municipal do Rio de Janeiro.
A República brasileira foi feita por homens de convicções diferentes, destacando-se militares e positivistas, com menor participação de elementos civis de tendências liberais. A vertente positivista foi representada por Benjamin Constant, ídolo da juventude militar que, embora tendo rompido com a Sociedade Positivista, manteve boas relações com seus membros mais ortodoxos. Vários monumentos localizados em praças no Brasil seguem a orientação positivista. Esse é o caso do monumento a Floriano Peixoto localizado na Cinelândia e do em homenagem a Benjamin Constant na Praça da República, ambos no Rio de Janeiro.
O que se pretendeu com essas rápidas pinceladas foi traçar um breve painel sobre a linhagem artística dos monumentos e bustos que existem em nossas cidades. É bom lembrar que cidades como Paris possuem incontáveis monumentos e bustos em suas ruas. O que se contesta na rejeição da prefeitura da cidade de São Paulo à colocação de bustos é a explicação “muito século XIX”. O que deveria importar é a qualidade artística do trabalho e o perfil do homenageado, afinal sabe-se que assembleias e câmaras são pródigas em autorizar nomes de ruas e outras homenagens públicas a figuras sem a menor expressão.