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Assombrações
Não sei precisar a hora da madrugada. Entretanto, mais ou menos no mesmo horário, noite adentro, éramos acordados pelo tropel de um cavalo. O trajeto do animal sempre o mesmo. Vinha pela rua e dobrava à esquerda, justamente na esquina da casa onde morávamos. Então o ruído dos cascos as bater contra o chão diminuía e o silêncio voltava a reinar.
No vilarejo ninguém se atrevia a abrir as janelas para observar o estranho cavalo. Mas, se sabia que, certamente, se tratava de uma mula sem cabeça. Os ruídos na madrugada haviam surgido pouco depois da morte de uma mulher que, assim se dizia, mantivera relações íntimas com um padre. Depois da morte sobre ela pesara o castigo: seria para sempre mula sem cabeça, mundo afora errando nas madrugadas.
Os tempos eram outros. Nada dessas engenhocas eletrônicas que hoje andam nas mãos das crianças. Se nem com a energia elétrica podia-se contar em todas as noites… As quedas de fase eram constantes. Os apagões também. E as tempestades.
Tínhamos medo de tudo. Acreditávamos em tudo. Na falta de outras distrações os mais velhos ocupavam-se em contar histórias. Quantos casos narrados sobre almas do outro mundo, assombrações sempre prontas a aparecer e nos assustar.
Houve o caso daquele Felício sobre quem se dizia ser sujeito muito ruim. Contavam-se ruindades perpetradas por ele, com aquela de matar animais só pelo prazer de matar. E muitas outras. Mas, quando o Felício adoeceu, a criançada se pôs em vigília. Eis que seríamos assombrados por um ser terrível assim que o Felício morresse. Um corpo seco, nisso ele se transformaria após morrer. Esse corpo insepulto vagaria nas noites para desespero de toda gente que, de nenhum jeito, queria com ele cruzar. Gente ruim virava corpo seco, disso se tinha certeza.
Um dia o Felício morreu. Nunca soube se alguém topou com ele sob a forma de corpo seco. Depois crescemos, o mundo mudou e hoje pouca gente se preocupa com mulas sem cabeça, corpos secos e assim por diante. A infância mudou tanto… Muito.