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Patrulhamento ideológico
Só de ouvir falar em patrulhamento ideológico a gente sente arrepios. Quem não se lembra dos tempos da ditadura militar no Brasil, os tais anos de chumbo? Naquela São Paulo do final dos anos sessenta e início dos setenta ninguém falava nada. Você entrava num ônibus e as conversas, se haviam, deixavam de lado a política. Política não era assunto para ser conversado abertamente, vai que ali do lado estivesse alguém diposto a alguma deduração.
A geração que esteve nas faculdades naqueles anos sabe bem o significado de “patrulha ideológica”. O pior da patrulha é quando você se descobre patrulhando a si mesmo, autocensurando-se. Exemplo? Nos anos setenta fui escolhido para fazer um discurso de formatura.Passei dias patrulhando-me, sob as lentes do pior censor que já tive: eu mesmo. Escrevi páginas e páginas que foram para o lixo porque as palavras sempre tinham resíduos de revolta e seriam submetidas a aprovação prévia. No fim, não me foi possível a isenção total, daí que, após fazer o discurso, um militar presente me procurou para dizer que não concordava com as minhas opiniões mas que, ainda assim, optaria por ignorar o que eu disse. Falando sério, o discurso era bobo, bobo. O militar não era alta patente, nem nada, mas naqueles tempos uma farda tornava qualquer um tremenda autoridade. Ou temeridade.
Pois. Hoje Luiz Carlos Barreto, 81, escreve na “Folha de São Paulo” artigo cujo título é “A volta das patrulhas ideológicas”. Barreto é o produtor do filme “Lula, o filho do Brasil” e acusa “escribas, comentaristas, políticos, colunistas sociais improvisados, ex-militantes políticos de aluguel e cientistas políticos de plantão” de especularem sobre o potencial político-eleitoral do filme que teria reflexos sobre o resultado das próximas eleições presidenciais. Acrescenta o produtor que toda essa gente questiona o direito de fazer filmes sobre o que quer que seja; fazem-se filmes sobre Berlusconi, Miterrand, Juscelino, Tancredo etc, só sobre Lula não se pode fazer um filme. Diz ainda Barreto que poucos criticaram o filme como obra cinematográfica; os que escreveram sobre o filme preferiram o caminho elitista, censor, autoritário. No mais, o produtor de “Lula, o filho do Brasil” invoca a democracia, regime que não deve silenciar aqueles com quem não se concorda, eliminá-los ou evitar que se manifestem.
Há que se respeitar a posição de Luiz Carlos Barreto, homem dedicado ao cinema nacional para o qual muito tem contribuído. Entretanto, o que ele pede representa a descontextualização de uma obra cinematográfica. O filme “Lula, o filho do Brasil” não é uma obra ficcional que deva ser tratada criticamente apenas pelo viés artístico. O filme vem à luz num momento de definição de conjunturas e envolve personagem que hoje ocupa a presidência da República, engajando-se publicamente numa campanha que dê continuidade ao seu modo de governar, talvez predestinando-o a tornar-se a eminência parda de um novo governo. Mais: a personagem principal tem se mostrado ator de si mesmo , não sendo incomum que se autoglorifique; ele nega feitos do passado, mostra-se intolerante e posiciona-se como único e universal caminho para a salvação do Brasil. Não fora por isso tudo, namora com medidas autoritárias que frequentemente são rechaçadas por uma sociedade que quer continuar democrática justamente para que filmes como “Lula, o filho do Brasil” continuem a ser produzidos.
Filmes como“Lula, o filho do Brasil” podem e devem ser feitos, atestando com a sua realização a existência de um regime democrático no país. Do mesmo modo as críticas aos filmes, independentemente de suas naturezas, devem continuar a ser feitas em nome da mesma liberdade e do mesmo regime democrático. Tudo sem patrulhamentos, de lado a lado.