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A mancha do nazismo em “O Leitor”
Um amigo sugere que eu escreva sobre o filme “O Leitor”(The Reader - 2008). Digo a ele que assisti já há algum tempo e talvez alguns detalhes me escapem. Em verdade a minha afirmação esconde certo desconforto de abordar uma história que se preocupa em revelar faces ocultas do nazismo. Existe um mistério latente quando se desce do plano do hitlerismo e suas ações em massa para a vida particular de cidadãos alemães que, querendo ou não, envolveram-se com o nazismo. Nunca será demais lembrar que dentro das fronteiras de um país em guerra e sob a ideologia do nazismo podem ser observados fatos e comportamentos anormais,daí a dificuldade do julgamento de culpabilidades em certas ações pessoais.
A culpa alemã em relação ao Holocausto parece não ter fim. Quem lê escritores alemães ou freqüenta o noticiário do país percebe que as referências ao nazismo e nazistas são recorrentes. Trata-se, talvez, de um processo de autopurificação. É preciso exterminar todos os demônios, enfrentando-os um a um.
A edição de 25 de junho do semanário Der Spiegel noticia a proximidade do julgamento de um ucraniano - John Demjanjuk - que colaborou com os nazistas no campo de extermínio de Sobibor. O fato dá ensejo a uma equipe do Der Spiegel para comentar que o assassinato em escala de seis milhões de judeus é de responsabilidade dos alemães; entretanto, aconteceu com o conluio de outros países europeus daí o julgamento de Demjanjuk servir para projetar luz sobre os estrangeiros que ajudaram Hitler. Essa reportagem provocou forte reação na imprensa polonesa que acusou os alemães de tentarem colocar a culpa de seus próprios crimes nazistas nos outros.
Como se vê, o nazismo permanece vivo. Dele ocupa-se também o cinema que recentemente utilizou o tema em novos filmes.
Em “O Leitor” um adolescente, Michael Berg, apaixona-se por uma mulher mais velha que ele, Hanna Schmitz. No período em que se encontra com Hanna, Berg lê para ela romances e poesias. Depois de algum tempo Hanna simplesmente desaparece. Berg desespera-se e não a esquece. Oito anos depois Berg é um estudante de Direito que vai assistir a um julgamento de mulheres que trabalharam em campos de concentração. Numa das audiências reconhece Hanna, uma das acusadas.
O interessante no julgamento de Hanna é o modo como ela entende o seu trabalho no campo de concentração. Ela explica que exercia uma atividade normal obedecendo a ordens que deviam ser executadas, ainda que essas ordens representassem a escolha de judeus para a câmara de gás. Tratava-se de uma rotina de trabalho como outra qualquer que a mandassem desempenhar. Escapa-lhe de todo o horror de sua conduta: havia um trabalho a fazer e ela fora designada para fazê-lo. Senão, quem o faria?
Hanna é condenada porque acaba confessando responsabilidades maiores que as suas no extermínio de judeus. Assistindo ao julgamento, Berg descobre que Hanna tem um segredo e em nome dele assume a culpa. Esse fato ligará a trajetória de Berg à de Hanna durante os seus anos de prisão.
O enigma da admissão dos crimes de Hanna é esclarecido aos espectadores e confere sentido à trama. Entretanto, saímos do cinema intrigados com a personagem vivida por Kate Winslet. Não é só o segredo que ela se nega a revelar que nos surpreende: a noção de responsabilidade de uma mulher simples ao cumprir com determinação ordens terríveis extrapola a nossa capacidade de entendimento.
“O leitor” revela o desejo da sociedade alemã de expurgar de seu seio a mancha do nazismo. Para os espectadores é difícil sentir pena de Hanna. Somos, sim, sensibilizados pela sua tragédia pessoal. Mas a sombra do nazismo permeia os passos da ex-funcionária de um campo de concentração. Não importa muito que Hanna nos seja apresentada como personagem bastante humanizada: ela ama, trabalha, é correta, mulher como outras mulheres, mas dual: sobre ela pesam os crimes que precisam ser julgados, condenados e esquecidos.
“O Leitor” é um grande filme, daqueles que nos fazem pensar. Reconhecemos na trama personagens convincentes envolvidos por um clima de culpa e necessidade de punição. Kate Winslet está maravilhosa no papel de Hanna; Ralph Fiennes é perfeito na interpretação do Berg adulto.