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O Sapateiro
Chamava-se Zé, pela profissão conhecido como Zé Sapateiro. Quando falavam dele referiam-se, sempre ao “Sapateiro” para não confundir como os outros “Zés” do lugarejo.
Era homem circunspecto, de sorrisos raros e que nunca se completavam. Gordo, tinha a face redonda, pouco cabelo e a barba rala e mal feita entrando pelos lábios. Tido como preguiçoso demorava-se a devolver os calçados que recebia para consertar. Defendia-se quando alguém reclamava, dizendo que o ofício exigia paciência, cuidado e muito jeito para não danificar o calçado. Caprichava na meia-sola, sola inteira, troca de saltos. Couro e borracha mais a cola de sapateiro eram usados com habilidade. No fim demorava, mas o serviço saia a contento.
Pois nunca se ouvira do Sapateiro uma só palavra a respeito de qualquer mulher. Solteirão convicto nunca se soube que ele tivesse mantido algum namoro mesmo na juventude. Era homem do jeito dele, quietão, nem sempre afável, fechado em seu mundo resumido à sapataria e a casa onde ela ficava e ele morava.
Defronte a sapataria morava uma viúva cujo marido falecera há alguns anos. Em moça fora atraente, mas, passado o tempo, mantinha alguns resquícios da antiga feição. Era ela professora da escola primária da qual voltava todo dia no fim da tarde. Chegada em casa, guardadas as coisas, costumava sair à janela onde ficava até o anoitecer.
Não me lembro de quem foi o primeiro a notar a troca de olhares entre a viúva e o Sapateiro. Ele sentava-se, trabalhando, justamente defronte a porta aberta da sapataria que dava para a janela da casa da viúva.
Com o tempo o flerte se tornou público, correndo até o boato de que o Sapateiro estava de namoro com a viúva. Depois, passaram a comentar que os dois se casariam, assim falavam as comadres. De concreto sabia-se da intenção da viúva que via com bons olhos a possível união. Para o Sapateiro ninguém ousava perguntar nada, embora não fosse incomum que, nos momentos em que a viúva saia à janela, alguém chegasse à porta da sapataria, atrapalhando a visão do Sapateiro. Fazia-se isso só para ver o desespero dele que queria o espaço livre para observar a amada.
Trocaram e trocaram olhares, por muito tempo até que a viúva se cansou e recolheu-se, não mais vindo a janela. Comentou-se que ela perdera a esperança de ser abordada por aquele homem estranho que nunca chegou a dizer a ela uma só palavra.
Tempos depois a viúva adoeceu e as más línguas atribuíram o mal ao amor não correspondido. Definhou depressa a professora viúva até que, certo dia, morreu.
O velório foi feito na sala da própria casa e enterro saiu no início da tarde. Quando o caixão passou pela rua o Sapateiro permaneceu em seu lugar de costume, sentado e consertando sapatos. Há quem diga ter visto uma lágrima descendo do rosto do Sapateiro no momento em que a amada foi levada. Outros contaram que, no dia do enterro, o Sapateiro fechou mais cedo a sapataria, só voltando a trabalhar na manhã do dia seguinte.