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Alguém que andava por aí

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Morreu o Marcos para quem a vida nada mais era que um acidente biológico, sem antes nem depois, invalidando todos os credos. Nunca foi, de per si, um filósofo e nem adotou qualquer escola filosófica como padrão de pensamento. Se leu filosofia foi em horas vagas e por distração: empolgava-o o esforço humano em compreender sua própria natureza, embora não visse nesse ato qualquer finalidade.

Marcos tinha perfeita consciência do imediatismo de tudo o que se faz e suas consequências. Talvez por essa razão não visse lógica em qualquer tipo de planejamento para um futuro incerto e que, por capricho da morte, simplesmente poderia não existir. Avesso a tudo que dura, detestava contratos aos quais taxava de meio utilizado pelos homens para emprestar eternidade ao que é finito.

Por pensar assim, era-lhe estranha a idéia de família. Considerava o casamento como uma instituição perversa, criada para sacramentar ligações a qualquer custo. Sendo o sexo uma necessidade de natureza puramente biológica e a atração nada mais que exacerbação dos sentidos, comprazia-se na prática sexual como meio de livrar-se de necessidades imperiosas. Ainda assim, evitava o convívio prolongado com mulheres. Na única vez em que as suas teorias foram ameaçadas por uma ligação com mulher que beirou a paixão, desapareceu subitamente para retornar tempos depois, dizendo-se curado.

Um homem assim viveu entre nós. Tinha ele o olhar agudo que localiza de imediato o absurdo das situações e em sua boca jazia sempre o sorriso dos boçais, emprestando ao seu rosto a aura do palhaço que ri de tudo e de si mesmo. Mais de uma vez eu disse a ele que o tal sorriso fora uma adaptação morfológica de seus lábios, caracterização possível a um mestre da mímica que quer zombar do mundo. Dizia-me ele que não, jamais interferira naquilo que fora geneticamente mal feito e que resultara na aparência tida por ele como esdrúxula, mas que, no fundo, pouco lhe importava.

Marcos jamais teve atividade fixa e o pouco dinheiro que ganhou resultou de publicações esparsas de seus textos, arranjadas por amigos. Tempos atrás sofreu um derrame. Fui visitá-lo no hospital e ele me recebeu com a alegria de quem encontra um amigo em pleno campo de batalha. O desvio de rima consequente ao derrame roubara-lhe parte do sorriso, mas a alegria era genuína. Durante a conversa ele me confidenciou que aquele lugar tinha todas as características do corredor da morte, porque de um dia para outro os doentes graves desapareciam e eram substituídos por mais gente destinada a morrer. Era o seu modo de encarar o fim, com o imediatismo de sempre e a eterna vocação para identificar o absurdo.

Hoje de manhã recebi a notícia da morte do Marcos.  Não sei se irei ao enterro. De todo modo, decidi tirar o dia de folga porque, assim me pareceu, o mundo ficara vazio de repente. Depois fui até a janela, observei os carros passando na rua e percebi um imenso buraco na realidade deixado por um amigo que andou por aí, quase sempre incógnito, rindo de tudo, certamente sofrendo muito por si e pelos outros.

Adeus a um amigo

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O Dito Neves morreu nessa madrugada de enfarte. Era desses caras que não carecem de obituário: fez em vida um pouco de tudo, da valentia à passividade, da mesura ao gesto violento, da arrogância a esse jeito tão dele de conformado.

Nunca esteve no meio termo e, se parou nele, foi como o equilibrista que dá um breque na andança sobre a corda, isso pelas alturas do vigésimo terceiro andar. No mais, atacou sempre pelos extremos, indo e vindo na velocidade de um cérebro arredio e sempre em estranhamento com as coisas do mundo.

Foi o que foi. É impossível para qualquer de nós que o conhecíamos deixar de vê-lo com o seu terno e gravata, sorriso de mofa nos lábios, maneirismo estudado, um gentlemam de repente convertido a qualquer seita dirigida por uma bela mulher, pronto a professar uma fé que a conduzisse ao leito. Mas não se pense que era mulherengo! Não! Antes, foi um soldado que jamais fugiu ao compromisso de homem - conforme alertava.

Certa vez perguntei ao Dito Neves. – ele que se meteu em tanta briga de rua – se era capaz de matar. Não pensou muito. Olhou-me com o jeito do professor que se prepara para uma lição e veio com essa de que sempre bateu para matar, o diabo é que ninguém havia morrido.

Então é tarde e penso que essa é a primeira noite do Dito Neves no cemitério, debaixo da terra. Penso nele frio, dentro do seu terno, sem sorriso, sem nada, sem histórias. Acabado. Me vem a certeza de que ele riria desse texto, acharia perda de tempo, absurdo. Quase me comovo ao constatar esse fato, mas me ocorre que o texto sobre a morte dele é tudo que me resta e posso fazer, agora que ele se foi e está lá debaixo da terra, dentro do seu terno húmido, enquanto continuo aqui, lembrando e esperando.

Escrito por Ayrton Marcondes

4 outubro, 2009 às 7:59 am

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