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Página em branco
Ora, aí está você, bem acomodado, página em branco ou um editor de textos ao seu alcance. Como nos videogames, você é o herói dessa história e a sua missão é escrever alguma coisa, um texto qualquer. Esse o seu desafio.
Ótimo, você é maníaco por games, mas de cara percebe que este é diferente, uma vez convertido em herói seus poderes tornam-se ilimitados, pode escrever o que quiser, até mesmo ferir o papel com um rabisco. Entretanto e como em tantas outras situações, você não sabe usar o poder e, cá entre nós, não tem a mínima idéia do que vai escrever. Mas como todo herói de respeito, não deixa que ninguém perceba o seu impasse, sorri e resolve pensar um pouco enquanto suas mãos brincam com essa arma terrível que é a caneta.
Bem, a primeira coisa em que pensa é em contar algo que aconteceu a você e aí surge o primeiro problema: melhor uma história alegre ou triste? Viu só, com um balanço de cabeça e uma ajeitada de cabelo você já saiu de onde estava e atingiu o limiar da comédia e do drama. Você consulta o seu espírito, não, o dia hoje talvez não esteja para piadas, o melhor será um drama, talvez até mesmo uma tragédia. Claro, existem tantas histórias de tragédias, que tal a de um ônibus cheio de crentes despencando numa ribanceira, como se explica que tanta gente de fé morra junto e na mesma hora? Não, isso não, talvez não seja o caso de contar uma coisa assim, lembre-se de que filmes sobre acidentes não estão muito na moda, o mesmo em relação aos de incêndios e terremotos. Monstros? Ah, também não, hoje em dia eles só sobrevivem naqueles seriados japoneses para a televisão, meu Deus como você acha aquilo ruim, não, não, você não escreveria sobre monstros.
Diabo, você já pensou tudo isso e não escreveu nada! Bem, agora surge uma idéia: um sujeito numa estação de trens, as estações têm um ar romântico e de aventura, pode dar certo. Você parte para o primeiro parágrafo, conta que o sujeito está na estação, vai descrever o lugar onde ele está ou não? E o tal sujeito como ele é? Ou poderia ser ela? Caso seja ele, pode ser herói ou vilão; para ela o melhor é que esteja agoniada, esperando por alguém, isso dá um conto de amor, não, você brigou com a sua namorada e não quer falar sobre amor. Ok, então é ele. Velho ou moço? Bem ou mal vestido? Rico ou pobre? Vai falar do seu passado? Olhe que dá tempo enquanto ele espera o trem. Aliás, você não se decidiu ainda, ele está chegando ou partindo? Se estiver partindo, pode estar indo por vontade própria ou fugindo. Claro, você tem razão, alguém que foge é mais interessante, escreva isso, ele é um homem, bem vestido, moço e está partindo, tá bom, fugindo. Mas existe alguém atrás dele? Terá cometido um crime? O trem deve chegar logo para que ele escape da polícia? Pense bem, isso causa impacto, você pode descrever o estado de espírito do homem, não gosta da idéia? Então que seja, ele está fugindo de si mesmo, de um ciclo de vida que se encerrará assim que pegar o trem. Um sujeito moço, bem vestido, fugindo de si mesmo, numa estação, esperando o trem, você pretende embarcá-lo? Vai descrever a chegada do trem, a emoção da sua personagem ao deixar a cidade em que vive? Ou seria melhor inventar, na hora da chegada do trem, um grito às costas da personagem, dado por uma pessoa que chega de repente, alguém que não estava na história, alguém de quem ele estava fugindo? E esse alguém é um homem ou uma mulher? Meu caro, você não queria falar de amor, mas esse é o tipo de papel para ser vivido por uma mulher. Uma mulher gritando numa estação, tentando impedir a fuga do homem que ama, sinceramente, isso dá Ibope. Ah, claro, trata-se de uma mulher, não, nada de descrever o aspecto dela, se é bonita ou feia, na cabeça do leitor uma mulher assim só pode ser bonita, na verdade ela terá o jeito que cada leitor idealizar para a mulher que ele gostaria que o impedisse de embarcar num trem. Além disso, você sabe que uma mulher correndo e gritando compõe com um homem pronto para embaraçar uma cena de ação, daí nesse parágrafo não haver lugar para descrições, não acha?
Nossa, veja aonde você chegou. Ele está para embarcar e ouve o grito dela. E agora, você acha que ele volta? Aí você decide. Se preferir algo piegas, ele volta e, se voltar, meu Deus, que abraço. Se não, ele vai embora, ela não chega a tempo, o trem na verdade não pára, ele pula para dentro do vagão e ela fica na plataforma desesperada porque o perdeu para sempre.
Se a história acabou? Depende de você. Essa pode ser só a cena inicial, agora ele já está no trem, você resolve para onde ele vai, o que vai fazer; na página trinta você conta algo sobre a infância dele, na cinqüenta volta ao assunto, mas só para retomar à cena da estação e explicar porque ele estava deixando a mulher que amava e fingindo estar fugindo de si mesmo. Na página setenta e cinco talvez você abra o jogo com o seu leitor e o informe que o tal sujeito era um pastor que abominou Deus, um filósofo ou, ainda, um criminoso. Mas cuidado, um cara assim talvez não deva passar da página cem, ele foi só um começo, nesse meio tempo surgiu gente bem mais interessante na sua história, melhor arrumar um acidente ou uma doença que o mate antes da página cento e um.
Como? Não gostou da história? Achou banal, repetitiva, sem emoção? Bem, você pode jogá-la fora, faça o que quiser com ela. Ora, se quer mesmo comece um novo texto. Fique à vontade quanto ao seu futuro. Sabe, para dizer a verdade não era você, mas sim eu quem tinha à minha frente uma página em branco. Vamos, por favor, não se ofenda, mas você foi a personagem que escolhi: um sujeito incapaz de contar uma boa história e que apela para clichês. É que gosto muito de games, principalmente desses em que sou o herói e recebo a missão de povoar páginas em branco com gente como você.