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2011
Comecei a escrever algo sobre a passagem de ano e desisti. No texto estavam arrolados alguns acontecimentos que me impressionaram em 2010. Mas, não gosto de retrospectivas: elas eliminam pelo menos uma parte do mistério de coisas que presenciamos recentemente, reavivam fatos por atacado e concorrem para desmitificá-los. Memória boa é a despertada naturalmente e ao acaso porque nos faz voltar a um fato, quase sempre com abordagem isenta de compromisso e, talvez, paixão. Quem discorda que se lembre da campanha presidencial de 2010 a qual, se não chegou a empolgar, envolveu-nos a ponto de convidar-nos a reflexões e comentários. Não é preciso que ninguém venha soprar em nossos ouvidos lembranças da campanha: basta olhar a foto da presidente eleita desfilando em carro fechado por conta da chuva e a figura do ex-presidente descendo a rampa ao som do hino do Corinthians. As memórias não precisam de nada mais que isso para deixaram-se levar – ou não – num encadeamento de fatos, agora mais isentos de paixão porque, afinal, tudo está consumado.
No dia 31 intentei despedir-me do ano com algum afeto, fazendo um desses agradecimentos velados, no mínimo por continuar vivo. Impossível porque dei de cara com obstáculos intransponíveis, certo desdém para com a realidade que a cada dia mais me desagrada. Pertenço a um país que me oferece, realmente, condições de vida bastante razoáveis: existe liberdade de ir e vir, não há terremotos, vulcões não operam, nevascas são raras e apenas no sul, o clima mais ajuda que gera problemas, esses restritos a enchentes, chuvas demasiadas e não sei mais o quê. Em contrapartida, existem as contrapartidas que todos sabem muito bem, a começar pela desfaçatez dos homens públicos, a ignorância e a sempre crescente falta de educação. A isso se soma toda sorte de problemas ligados à violência e falta de infraestrutura em várias áreas. Mas, parei aí. Era o dia da passagem de ano e achei que o espírito meditabundo não me convinha.
Enfim, não terminei nenhum texto e deixei-me perder em lembranças de muita gente que conheci e já desertou deste mundo. Vieram meus avós, meus pais, tios, parentes não tão próximos, amigos de todas as décadas, inimigos a quem não reservei muito espaço de recordação. Entretanto, a memória é caprichosa, ela nos conduz por labirintos, rios estranhos que não nos damos conta, mas desaguam nalgum subterrâneo de coisas esquecidas, sempre prontas a emergir.
Foi assim que cheguei a uma manhã de 01 de janeiro de um ano que não sei precisar bem, mas situado no tempo em que eu frequentava o grupo escolar. Tinha eu, nos bancos escolares, um amigo inseparável, chamado Gabriel. Pois, naquela manhã a população do lugarejo onde eu morava foi desperta por fato inusitado: um homem chegara à praça, arrastado pelo seu cavalo, completamente transfigurado e ensanguentado, obviamente morto. Esse homem era o pai do Gabriel, meu amigo. Consta que ele bebera muito na passagem de ano e caíra do cavalo, não conseguindo retirar o pé do estribo. Assim, preso ao arreio, foi ele arrastado pelo cavalo, quilômetros a fio, na estrada de terra.
Quando soube do fato, corri à praça. Era uma manhã muito clara, sol forte e lá estavam o cavalo e o morto a seus pés. Durante alguns anos essa imagem terrível sempre me voltava nas passagens de ano até que me libertei dela, esquecendo-me do fato. Além disso, depois que saímos da escola, nunca mais vi o Gabriel e sabe-se lá qual terá sido o destino dele nesse mundo de Deus. Então, as coisas ficaram assim até o último dia de 2010, quando, de repente, me tornei de novo um menino entrando numa manhã límpida e de muito sol para ver um homem morto junto ao cavalo que o arrastra durante a madrugada. Nas horas seguintes em vão tentei me libertar daquela manhã e do homem morto cujo rosto se tornara irreconhecível. Foi muito difícil conseguir porque alguma coisa em mim prendia-me ao meu mundo de menino, talvez uma negação do presente, talvez uma insatisfação sem remédio com os tempos atuais.
Mas, vieram os fogos, as memórias ficaram para trás e o futuro se impôs. Os mortos retornaram aos seus túmulos e talvez eu tenha tomado um pouco mais de vinho porque aquela manhã trágica dos meus tempos de menino de repente se desfez. Se bem me lembro isso aconteceu quando recebi o primeiro abraço, gesto cordial e bem presente que chegou para me dizer que o passado pertence ao passado e os mortos, arrastados por cavalos ou não, devem ser deixados em paz.
Vida longa a todos nós.