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Um mundo de estranhos
Vive-se numa época de estranhamentos. Nem se trata do velho “cada um por si”. A complexidade da vida cotidiana gera estranhos em plano superior ao simples “pessoa que não conhece a pessoa”.
Dirão que sempre foi assim. Pode-se retrucar dizendo que, entretanto, a urbanidade está em linha descendente, talvez irreversível. O fato é que valores como a própria urbanidade e a solidariedade vão deixando de existir. Existe, sim, a solidariedade gerada por fatos de grandeza maior que provocam comoção pública. O terremoto do Haiti gerou uma onda de solidariedade bastante real, traduzida no envio de gêneros e assim por diante. Nas enchentes sempre se sobressai alguém disposto a resgatar pessoas isoladas e em perigo. Nesses casos, fala mais alto o sentimento de humanidade, a necessidade de participar de algo que reconduza a vida geral aos seus padrões de normalidade.
Entretanto, que dizer em relação às coisas miúdas, aquelas em que se torna tão mais simples passar ao largo para que não exista envolvimento? Por que testemunhar em relação a algo que se presenciou por acaso e que não se relaciona conosco? Por que exercer essa forma de cidadania que em geral nos traz mais problemas que os que já temos?
Não digam que é fácil. Eu, por exemplo, escrevo esse texto porque certa imagem não me sai da cabeça. Dias atrás, cerca de onze horas da noite, passava eu, de carro, por uma grande avenida de São Paulo. Eis que, de repente, vi na ilha que separa os dois lados da avenida, uma moça gritando, desesperadamente. Pelo jeito ela sofrera algum tipo de agressão, talvez um ladrão tivesse levado a sua bolsa, como saber? Quero dizer que a cena durou poucos segundos: havia muito movimento, era impossível parar ali, talvez até perigoso em não se sabendo a natureza da ocorrência que levara a moça ao desespero.
Cheguei em casa incomodado. Eu não fizera nada a respeito. Na verdade não me ocorrera nenhuma déia sobre o que fazer, talvez uma ligação para o 190, sei lá. Poderia ter parado uns dois quarteirões à frente e voltado? Mas, numa cidade tão violenta e àquelas horas da noite? Depois, eu não estava sozinho, poderia comprometer a segurança da pessoa que estava comigo. Mas e ela lá, sozinha, gritando? E se fosse a minha filha, eu não consideraria uma grande desumanidade ninguém tê-la ajudado?
Prós e contras. Justificativas. A cidade grande despersonaliza, gera contextos nos quais nos abrigamos para sobreviver. Evitamos entrar no mundo dos outros, esses estranhos, tão estranhos como nós mesmos.
No fim ficou a imagem da mulher gritando. A rapidez da cena que presenciei não me permite falar a respeito de seu rosto, nem mesmo a cor da roupa que vestia. Só sei que era uma mulher, aparentemente moça e que usava um vestido. Estendia os braços pedindo socorro, gritando. Foi assim que ela ficou lá. É assim que vai viver para sempre na minha memória ao lado de um grande ponto de interrogação sobre ela, sobre mim, sobre a cidadania.