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Baú de Ossos
A boa notícia é que os livros de Pedro Nava serão reeditados. Os dois primeiros “Baú de Ossos” e “Balão Cativo” poderão ser encontrados nas livrarias já na próxima semana. Os demais estarão disponíveis até 2014.
Para mim o nome de Pedro Nava precedeu a publicação de seus livros. Eu o conhecia através da publicação, pelo poeta Manoel Bandeira, de um poema chamado “O defunto”. Esse “O defunto”, escrito por Nava, faz parte de uma “Antologia de Poetas Bissextos” selecionados por Bandeira. Trata-se um poema que acabei sabendo de cor tantas vezes eu o ouvi através das declamações de meu irmão. Então, através de meu irmão, Pedro Nava passou a fazer parte do continente literário ao qual tive acesso quando ainda rapaz.
O problema é que sobre Pedro Nava só existia e se sabia do único poema publicado e do fato de ele ser médico proeminente e amigo de intelectuais brasileiros. Isso e nada mais até que, em 1972, surgiu o “Baú de Ossos” livro que, de imediato fez grande sucesso e atraiu a atenção ao trabalho do escritor. O interessante é que quando publicou esse seu primeiro livro Pedro Nava, nascido em 1903, estava já com 69 anos de idade. Ao “Baú de Ossos” se seguiriam mais seis livros: “Balão Cativo”, “Chão de Ferro”, “Beira Mar”, “Galo das Trevas”, “O Círio Perfeito” e “Cera das Almas” (póstumo, incompleto).
Mas, por que ler Pedro Nava? Em primeiro lugar é preciso dizer que as obras de Pedro Nava são singulares em nossas letras dado o enlevo, rigor, poesia e propriedade com que o escritor se aplica ao memorialismo. Dotado de memória notável e servindo-se de anotações Nava traça um completo painel da cultura brasileira no século XX. Grande escritor, dotado de humor, artífice das letras, a Nava não escapam os hábitos familiares, a cultura popular, os grandes acontecimentos e seus reflexos sobre a vida dos cidadãos comuns. Através das páginas escritas por Pedro Nava recompõe-se o passado pelos olhos de um observador que presenciou os acontecimentos que narra, deles extraindo em profundidade a experiência humana. É da vida e do modo de ser das pessoas que Nava nos fala, trazendo-nos hábitos, costumes e experiências vividas. Interiores de casas, quintais, detalhes de cidades: nos livros de Nava, confesso admirador de Proust, se encontra o que de melhor e mais profundo se escreveu em termos de memorialismo em nossas letras. É com grande força poética que ele conduz o leitor à Belo Horizonte dos anos 20 e ao Rio antigo.
Pedro Nava morreu em 1984. Seu corpo foi encontrado numa praça do bairro da Glória, no Rio de Janeiro. O escritor havia se suicidado com um tiro na cabeça. Conta-se que a tragédia ocorreu após o recebimento de um estranho telefonema que, suspeita-se, fazia parte de uma chantagem a que Nava estava sendo submetido.
Todos às compras
Detesto quando não consigo localizar alguma referência bibliográfica. Na verdade permaneço possesso até me lembrar de onde e quando topei com alguma coisa que desejo reencontrar.
Acontece muito com textos. Vez ou outra, ao escrever, lembro-me de algo relacionado ao assunto do momento, algo que alguém disse e seria interessante citar. O problema é localizar quem escreveu e em que livro se encontra. Isso me leva a ficar olhando para a estante, observando lombadas de livros, como se de repente fosse possível algum deles saltar na minha direção, gritando que é a ele, justamente, que procuro.
Acaba de acontecer em relação a um parágrafo sobre guias de compras da década de 20 do século passado. Li em algum lugar que naquela época as famílias recebiam catálogos europeus, a maioria vinda de Paris, e faziam compras a distância. As encomendas eram enviadas ao Brasil por via marítima e os interessados recebiam uma grande mala, em casa, com os produtos escolhidos e comprados. E era uma delícia quando aquilo tudo chegava, produtos vindos diretamente da Europa, vestidos e ternos de Paris, imagine.
Agora já me lembrei de que quem nos relatou essa preciosidade: foi o fantástico memorialista Pedro Nava. Mas, a minha memória falha quanto à citação do livro em que isso se encontra. Penso que talvez em “Bau de Ossos” porque, salvo engano, a descrição se refere à época em que o escritor, ainda rapazote, mudou-se para o Rio. Era na antiga capital federal que os navios carregados com novidades da Europa aportavam, trazendo delícias para as famílias de então. Entretanto não me fio muito nessa observação, feita de memória e à distância dos livros de Nava.
Esse assunto tem sua razão de ser porque vivemos outro grande momento no qual somos diariamente incitados às compras. Agora as coisas não demoram a chegar. Compra-se pela internet, em vezes, prestações geralmente baixas e teoricamente sem juros. Não bastassem os anúncios publicados na própria internet, sites de compras e tudo o mais, recebem-se em casa catálogos de produtos que podem ser comprados diretamente pela internet. Coloridos, bonitinhos, encantadores, os tais catálogos constituem-se em grande tentação para os consumistas. Chega-se à era em que deixa de valer a pena consertar coisas quebradas porque sempre há um novo que pode ser adquirido com grandes facilidades. Outro dia mesmo um liquidificador da minha casa, talvez cansado de triturar coisas, simplesmente recusou-se a funcionar. Cheguei a colocá-lo no carro para levá-lo ao conserto e acho que ele ainda está no porta-malas que não abro há algum tempo. Na verdade achei mais fácil pegar um daqueles catálogos e lá estava um liquidificador moderno e oferecido a preço módico, dividido em dez vezes. Não pensei muito e agora está em minha casa o novo e imponente triturador enquanto o outro, fiel servidor de anos, repousa na escuridão do porta-malas, esperando seu inevitável destino: o lixo.
A crise mundial atormenta governos e corre-se o risco de recessão. Imagino o que será de muita gente se isso vier mesmo a acontecer. A verdade é que, nos últimos tempos, os brasileiros foram às compras e endividaram-se. O problema é que várias prestações de valor baixo assumem montante alto quando somadas. Tem muita gente por aí com televisor de LED e não sei de quantas polegadas, satisfeita da vida, mas com dez ou mais prestações a pagar, isso para ficar num só produto.
Quando tudo vai bem aposta-se no futuro, por que não? Então que a economia siga em ordem e sem essa de recessão. Muita gente se verá em apuros se a situação apertar e restarem muitas prestações a pagar. Daí que seria muito bom se a presidente da República recomendasse consumo – como recomendou - mas alertando que a coisa pode ficar brava, brava até demais.
Os poetas bissextos
Há casos nos quais fazer uso das idéias dos outros não é pecado. Acontece quando nos deparamos com algo que nos parece interessante demais e somos levados pela vontade invencível de compartilhar o que vimos com outras pessoas. Esse é, seguramente, o caso dos poetas bissextos cujas poesias Manuel Bandeira recolheu em antologia.
No prefácio que antecede autores e suas poesias Bandeira aconselha-nos a não procurar a expressão “poeta bissexto” em dicionários. Depois, define como bissexto “aquele em cuja vida o poema acontece como o dia 29 de fevereiro do ano civil”. Ou seja: “bissexto é todo poeta que só entra em estado de graça de raro em raro”.
Em seguida Manuel Bandeira reproduz o que escreveu Vinicius de Moraes sobre poesia brasileira contemporânea para a revista argentina Sur, no número de setembro de 1942. Disse Vinicius:
“…poetas que nós, seus íntimos, chamamos cordialmente de bissextos – poetas sem livros de versos – bissextos pela escassez de sua produção, cuja excelência sem embaraço os coloca ao lado dos mais citados.”
Vinicius exemplificou:
“Bissexto é um Pedro Dantas cujo poema “A cachorra” passou a ser uma obra-prima da literatura brasileira. O mesmo se pode dizer de “O defunto” de Pedro Nava, uma das peças mais belas e mais sinistras da nossa poesia. Bissexto é um Aníbal Machado, escritor esporádico, em quem o verso é uma espécie de estado de graça que assoma entre largos períodos de sombra; um Dante Milano, notável pela unidade da sua forma poética, de grande pureza; um Joaquim Cardoso, cuja produção se recusa à intimidade dos que lhe são mais chegados, tão íntima quer ser; um José Auto, poeta que se tem dez poemas, terá muito, mas em quem a poesia é uma fatalidade de condição. Bons poetas que futuramente figurarão, estou certo, ao lado da melhor poesia brasileira.”
No mais Manuel Bandeira alonga-se sobre características dos poetas bissextos, chamando—nos atenção a temática que é pobre, quase sempre reduzida a dois temas: o de certa dor nos acidentes passionais e o que Mário de Andrade chamou, com tanta felicidade, de “tema da vida besta”.
A antologia organizada por Bandeira reúne várias obras de poetas bissextos. Não deixa de ser uma curiosidade uma passada de olhos no índice onde encontramos nomes que não suporíamos ligados à produção poética, ainda que de quando em quando. Para se ter idéia fazem parte da relação: Aurélio Buarque de Holanda (mais tarde o “Aurélio” que conhecemos pelo seu dicionário), o pintor Di Cavalcanti, Gilberto Freyre, autor de “Casa Grande e Senzala”, Euclides da cunha, autor de “Os sertões”, o cronista Rubem Braga e muitos outros. Sobre Pedro Nava é interessante notar o fato de ele ter atravessado décadas na condição de bissexto, escrevendo ocasionalmente artigos na imprensa. Só em 1972 – oito anos antes de morrer – Nava iniciaria a série de publicações englobando os livros – “Bau de Ossos”, “Balão Cativo”, “Chão-de-Ferro”, “Beira-Mar”, “Galo-das-Trevas” e “O Círio-Perfeito” – com os quais logrou traçar um painel completo da cultura brasileira no século XX.
A “Antologia de Poetas Brasileiros Bissextos Contemporâneos”, de Manuel Bandeira, foi publicada pela Livraria Editora Zelio Valverde S. A., Rio de Janeiro’, em 1946. Existe uma 2ª edição revista e aumentada, publicada em 1964 por Organização Simões (Rio de Janeiro). Nas livrarias encontra-se uma edição da obra, publicada pela Editora Nova Fronteira, em 1992. Leitura indispensável.
Baú de Ossos
Baú de Ossos
“As malas vinham (da Europa) atochadas de encomendas feitas Au Bom Marché, de Paris. Primeiro vinham os catálogos cheios de figuras de botinas de senhoras, canotiers, espartilhos, chapéus para homens, capotes, roupas de toda sorte, agasalhos, brinquedos, blusas de mulher, gramofones, perfumes – tudo numerado e com o preço do lado. O catálogo era motivo de longos debates. Feitas as escolhas, mandado o dinheiro, dentro de mês, mês e meio, no máximo dois, o malão era entregue a domicílio. Não havia nenhum cerimonial na alfândega no nosso país facílimo. As chaves já tinham chegado pelo correio. Era só abrir e – que deslumbramento! Lembro bem da última, contendo um terno de casimira azul para meu Pai - que acabou recortado para mim e herdado depois por meu irmão José; aquele costume de veludo preto e minha Mãe, realçado por soutaches negros, mais os chapéu e os sapatos para serem usados com ele…”
Pedro Nava, Baú de Ossos, Ateliê Editorial, 1999
A primeira edição de “Baú de Ossos”, do médico e escritor Pedro Nava, é de 1972. “Bau de Ossos” é o primeiro de uma série de seis livros escritos por Nava após os sessenta anos de idade. Até então, Nava podia ser considerado escritor e poeta bissexto, escrevendo ocasionalmente enquanto se dedicava à reumatologia. Mas é a partir dos sessenta que o médico passa a escrever sua grande obra de memorialista que o situa como figura ímpar na literatura brasileira. Para Otto Maria Carpeaux, Nava é mais importante para a literatura brasileira que Marcel Proust para a literatura francesa.
“Baú de Ossos” é o relato fascinante das memórias de infância de Pedro Nava. O texto em epigrafe foi transcrito das páginas 338 e 339 da edição da Ateliê Editorial. A narrativa sobre as compras e a chegada das malas refere-se a um acontecimento ocorrido por volta de 1915 quando Nava, então menino, morava no Rio de Janeiro.
Lembrei-me justamente dessa passagem hoje, ao receber uma das várias publicações que chegam às nossas casas com ofertas de produtos. Pode-se comprar de tudo pelo telefone ou via internet. Os produtos já não vêm da Europa, são muito diferentes e demoram no máximo cinco dias para chegar. Não mandamos o dinheiro: paga-se com cartão de crédito. Não se compram espartilhos que saíram de moda, os homens mais raramente usam chapéus, os gramofones foram substituídos por home theaters e assim por diante.
As coisas mudaram as pessoas não muito. Ainda olhamos com curiosidade os catálogos e muitas vezes nos esforçamos para reprimir o desejo de comprar algo que nos agrada. E se compramos, é com a mesma vivacidade e alegria das gentes do passado que aguardamos a sua chegada.
Depois que me lembrei do texto de Nava gastei um bom tempo para localizar as páginas sobre as compras de sua família na Europa, via catálogo. Foi como um recuo no passado, retorno a páginas lidas e esquecidas: encontrei inúmeros nomes de pessoas conhecidas por Nava e citadas por ele. Não pude deixar de pensar que embora todas mortas, continuam vivas para sempre através da pena do memorialista. É possível a sobrevivência através da literatura.
Estava terminando esse texto quando fui interrompido pelo toque do telefone. Atendi e ouvi a voz de uma moça oferecendo-me a renovação da assinatura de uma revista. Tive vontade de perguntar a ela de que lugar estava ligando, se possível de que ano vinha a sua voz metálica.
Não cheguei a dizer grande coisa. Agradeci e desliguei pensando no que aconteceria se o correio me trouxesse um catálogo de Au Bom Marché, de Paris, com data de 1915. De preferência com direito, em caso de compras, à não cobrança de taxas alfandegárias.