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Azar e sorte
Há quem diga que azares sempre antecedem períodos de sorte. Existem pessoas que convivem com o azar durante toda a vida. São os tais azarados. Para esses nada parece dar certo. Tudo em que o azarado se mete acaba dando errado. Um conhecido comprou um ponto comercial no qual funcionava uma lanchonete de grande movimento. Não mudou uma só linha no negócio. Nenhum detalhe foi modificado. Três meses depois e sob a gerência do novo dono a lanchonete estava à mingua. Dirão que o conhecido não tinha tino comercial. Mas, se não foi a primeira vez… Fracassara em outras tentativas, nem sempre por culpa dele. Aliás, não foi ele quem começou com uma loja de roupas a qual, inexplicavelmente, foi destruída por incêndio? Perda total era com ele. Um bem-acabado espécime do tipo azarado.
Convivi com pessoa de minha família conhecido pela falta de sorte. Meteu-se em tantas coisas que não deram certo que seria inútil citá-las. Mas, para que se tenha ideia, certa ocasião peguei carona com ele numa viagem pela Via Dutra. Era um dia bonito, céu azul, impecável. Nenhuma nuvem. A certa altura um caminhão deslocou uma pedra do asfalto. Naturalmente a pedra veio a atingir o para-brisa do carro no qual viajávamos. Vidro estilhaçado, fomos obrigados a parar, retirando cacos de dentro do carro e os restos que haviam ficado presos no para-brisa. Ao retomarmos a viagem recebíamos na face o forte vento provocado pelo deslocamento do carro. Como reclamei o parente me contestou, dizendo: não reclame, afinal o céu está limpo e não está chovendo.
Mas, era ele, o azarado. Minutos depois eis que o céu, repentinamente, é coberto por nuvens negras. Não demorou a chover. Sem o vidro no para-brisas, recebíamos as gotas de chuva com a força de pequenas pedras que colidiam em nossas faces. Quem não tem sorte não tem. Pronto.
Mas, a sorte existe? Certa vez perguntaram isso ao pintor Pablo Picasso. A resposta de Picasso é conhecida: “toda vez que a sorte me procurou me encontrou trabalhando”. Mas, é inegável a ocorrência de períodos em que tudo dá certo para algumas pessoas. Uma coisa chama outra, como se diz. Há gente que parece nascer predestinada. Trazem do berço uma estrela cuja luz parece nunca se apagar. Sorte? Acaso? Não se sabe. Mas, acontece. Um rapaz que saiu de sua cidadezinha no interior veio a São Paulo para tentar a sorte. De formação primária era a ele difícil arranjar emprego. Foi salvo por um bilhete de loteria. Aliás não foi só essa vez que teve o bilhete de sua posse premiado. Também teve sorte ao aplicar o dinheiro. Uma gleba de terras que comprou por quase nada, no interior, foi revendida, anos depois, por uma fortuna. Quando morreu o sortudo tinha até apartamento até em Manhattan.
Azar e sorte talvez não existam. O melhor é dizer que acontecem bons e maus momentos. Atribuir a esses momentos a condição de azar ou sorte, nomear sortudos e azarados faz parte do cotidiano, embora não exista certeza absoluta sobre isso. Mas que tudo isso é muito esquisito, lá isso é.
A má sorte
A má sorte sempre impressiona. Mas, ela existe mesmo? Parece que sim. Tem gente que não dá sorte. Se numa seleção para um emprego restarem apenas dois candidatos o azarado sabe que não será ele o contratado.
Sempre me lembro de um parente que andava na contramão da sorte. Tudo acontecia com ele, até embarcar num trem no qual viajava um bandido, muito parecido com ele, e ser preso no lugar do bandido. No começo o parente reclamava da má sorte. Depois, habituou-se a ela. No fim da vida conseguia rir se seu azar. Muitas vezes sentávamos à mesa da cozinha e ele, comendo bananas, desfiava seu rosário de provações. Como aquela de sua participação no exame do CADES para conseguir a licença de professor. A prova se compunha de duas fases, a escrita e a oral. Fora bem na escrita. Na oral os candidatos eram arguidos por um dos quatro professores da banca - três homens e uma mulher. A torcida era para não cair com a mulher, conhecida por raramente aprovar alguém. Na vez do parente? Ora, não deu outra: foi inquirido pela mulher.
Como seria de se esperar o resultado não foi bom. Numa pergunta a professora disse que a resposta estava errada. O parente discordou. Daí para o bate-boca e a reprovação… Mas, o parente era um sujeito que estudava muito. Na quinta tentativa conseguiu a licença. E olhe que ele dominava o assunto das provas.
Noticia-se hoje o falecimento do ex-piloto de Fórmula-1, o neozelandês Chris Amon. Foi ele um dos melhores pilotos na década de 60 e início da de 70. Entretanto, ficou conhecido pela má sorte. Esteve 11 vezes no pódio, mas nunca conseguiu vencer. Depois da F1 conseguiu vencer as 24 horas de Le Mans. Mas, ao que se diz, a má sorte sempre o impedia conseguir vitórias.
Existem pessoas bafejadas com incríveis golpes de sorte, dessas inesperadamente agraciadas com prêmios ou situações de relevo. E há os azarados. Há quem não acredite nisso. Há quem diga que sorte e azar dependem do modo de ser das pessoas. Mas, aí entramos no território das coisas inexplicáveis.
A força do imprevisível
Num mundo de rotinas estabelecidas a imprevisibilidade funciona como desvio do pêndulo. Na Marginal do Tietê um técnico do Departamento de Trânsito decide parar para organizar o tráfego que não flui após a ocorrência de um acidente. O técnico desce de seu veículo para logo em seguida ser atropelado e morto por um carro que passa no local.
No Rio Grande do Sul um motorista de ambulância é chamado para atender vítimas de um acidente automobilístico. Ao chegar ao local encontra o próprio filho morto.
Acaso? Destino? Trapaças da sorte? Há muitos anos um amigo me dizia que se você não quiser encontrar uma pessoa que vive na mesma cidade o melhor é não sair de casa. Perguntei a ele se a teoria seria válida para uma cidade como São Paulo e ele me respondeu: mais ainda.
Não sei. O fato é que coisas assim não deixam de impressionar. Todo acontecimento que desafia a teoria das probabilidades não deixa de ser estranho. Qual seria, por exemplo, a probabilidade de um motorista de ambulância atender a um acidente no qual o próprio filho é o acidentado e, pior que isso, morreu? Nem quero começar a imaginar a surpresa e a dimensão da dor desse pai tão cruelmente maltratado pelas circunstâncias.
A intenção desse texto não é a de discutir por que certas coisas acontecem às pessoas, muitas vezes fatalidades que seriam evitadas caso os envolvidos tivessem apenas feito outro caminho. Nem mesmo se pretende ponderar sobre o porquê de algumas pessoas terem sorte, outras não, enquanto outras ainda serem simplesmente azaradas. Para quem não acredita na existência de gente azarada deixo aqui meu testemunho de que conheci pelo menos duas pessoas assim. Talvez você também já tenha cruzado com gente para quem nada dá certo. Se não se trata de azar o que é, então?
Um dos meus azarados prediletos foi pessoa a quem me afeiçoei muito. Ótimo sujeito, lhano, participativo, mas deserdado da sorte a ponto de rir das coisas que a ele aconteciam. Contava muitas histórias nas quais a sua habitual falta de sorte funcionava como protagonista. Uma delas, do tempo da Revolução de 32, é exemplar. Soldado das forças paulistas o meu conhecido estava num trem quando foi abordado por policiais e preso. Contra ele pesavam várias acusações às quais negava com veemência. A situação só foi esclarecida dias depois: a polícia estava à procura de um criminoso que, por acaso, tomara o mesmo trem que o meu conhecido. Mas, que relação existiria entre ele e o criminoso a ponto de ser preso no lugar dele? Ora, muito simples: o meu conhecido era um sósia perfeito do criminoso, conforme pode ele mesmo confirmar através de uma fotografia. O acaso colocara ambos os sósias num mesmo trem. Quanto ao azar esse ficava por conta de ter sido preso justamente aquele que não era o criminoso.
Do que se conclui que as regras desse grande jogo que se passa no planeta e envolve milhares de vidas são muito, muitíssimo, confusas.