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O “Mercado” de Paul Gauguin
Quando estudante em São Paulo eu morava, como toda gente, em república. Quartinho pequeno localizado em sótão algo sombrio, imerso num inverno muito frio daqueles tempos em que São Paulo ainda era da garoa. Uma cama que atrapalhava abrir a porta, mesinha com cadeira e uma reprodução do “Mercado”, de Gauguin, presa por um prego na parede. Ambiente propício para grandes criações que não vieram porque só os gênios adormecidos são capazes de despertar em lugares assim e produzir coisas que prestem. De modo que daquele tempo restaram umas páginas garatujadas à mão em folhas de embrulho. Os textos, ah os textos, todos sem começo e fim, procura incansável de nexo numa vida de todo sem nexo.
Naquele lugar o Gauguin figurava como vínculo com a arte, significando que nem tudo ali era o que era de modo que a qualquer momento algo de bom poderia emergir do lugar. Vez ou outra, durante as horas de estudo, eu erguia os olhos e dava com as mulheres sentadas em banco no mercado. Admirava os traços egípcios com que o pintor as caracterizara, combinando-as em posições laterais e frontais dentro de uma atmosfera na qual sobressaiam seus gestos rígidos, os vestidos longos, a profusão de cores que decresce da direita para a esquerda e os dedos longos. O quadro funcionava como uma porta aberta para outro mundo no qual eu, com frequência, perambulava, levando ao extremo a minha capacidade de abstração. Era a arte a serviço da fuga do cotidiano, do desespero e da imposição do presente. Arte funcional, portanto, tingindo de formas impressionistas um quarto que por si só apresentava contornos impressionistas. Dentro dessa perspectiva não seria impossível imaginar um quadro – o de Gauguin – dentro de outro – o quarto. Parte integrante da composição um rapaz sentado diante da mesa de estudo, vaga impressão do que ele poderia vir a ser no futuro caso aquelas leituras algum dia resultassem em alguma coisa.
Um ano depois, quando me mudei do quarto, não tive coragem de levar o quadro. Pareceu-me que a reprodução do Gauguin fazia parte da estética do cubículo e o transformava em algo que, sem ele, jamais poderia ser. Demais, sempre haveria novos moradores, estudantes vindos do interior e era possível que pelo menos um deles algum dia pudesse fugir da miséria dos dias usando o mesmo canal que eu, através do mergulho nas tintas de Gauguin.
Foi assim que deixei para trás “Mercado” e me distanciei dele. O quadro esteve esquecido por mim até que, muitos anos mais tarde, eu o reencontrei, agora no original, no Museu D’ orsay, em Paris. Acabara de ver obras de pintores impressionistas quando dei de cara com o “Mercado”. Foi uma grande comoção. Instantaneamente a ampla sala do museu sofreu um processo de redução de espaço, as paredes vieram sobre mim e, de repente, estava eu no antigo quarto, perdido na visão da reprodução do quadro de Gauguin. Magicamente, tornei ao rapaz sentado diante da mesa de estudo, observando as mulheres de vestido longo, sentadas num banco. Então me foi possível recuperar as sensações epidérmicas do meu tato sobre a mesa e compreender que talvez eu jamais tivesse saído dali, sendo toda a experiência posterior que supus ter vivido nada mais que um sonho. De algum modo a visão do quadro me aprisionara permitindo-me a alucinação sobre o que eu seria no futuro. Fui jovem novamente, talvez melhor dizer que era de fato e ainda jovem, imaginando-me no futuro, em Paris, num museu, observando a obra original de Gauguin.
Não sei dizer quanto tempo terá demorado a minha alucinação. Houve um momento em que me senti cansado e tive vontade de me levantar e ir até a cama para me deitar. Depois as paredes começaram a se afastar, ouvi vozes e vi que um segurança do museu segurava-me pelo braço, perguntando-me se estava tudo bem, convidando-me a sentar só um pouco para que o mal-estar passasse logo.
A desconstrução da arte
Todas as épocas tiveram os seus momentos de desconstrução que, mais tarde, tornaram-se moeda corrente para, por sua vez, serem desconstruídos pelas idéias novas de novos profetas. Foi assim que o realismo substituiu o romantismo, o modernismo zombou de tudo que veio antes dele e a ordem sucumbiu à desordem, então chamada de nova ordem.
Tudo isso faz parte da natureza do homem, da necessidade de renovação, do instinto de progresso, da fome de epílogos que inaugurem novos tempos.
Dentro de tal contexto, o real e o linear sucumbem. É preciso um novo traço, uma nova cor, a deformação da imagem, o avesso das palavras, a quebra do sentido, a ruptura da lógica, a negação do sequencial. Só assim o artista estará conectado com um mundo sem certezas, arrivista, no qual os acontecimentos forçosamente negam a racionalidade.
As novas realidades oferecem o perigo de triunfarem, entre os poucos verdadeiros artistas, os que apenas desconstroem, os iconoclastas que não sabem esculpir, os que desenredam por não saber enredar. Assim se fazem muitos gênios de momento, arautos de novidades incompletas que caem no gosto do público, propagando obras ininteligíveis, arrastando legiões de pessoas atraídas por algo que têm por avançado ainda que lhes escape o sentido do que observam ou lêem.
Ultimamente tem sido assim, entre nós, na literatura, na música, na moda, no cinema, na pintura, nas artes em geral. Premia-se o que é vago, valoriza-se o incerto, atribui-se pós-modernidade ao que pode ser catalogado como simplesmente “estranho”. A sociedade de consumo propaga as novidades, os pseudocultos integram-se para não ficar de fora e muitos intelectuais aderem por receio. Desse modo, a arte afasta-se de seus parâmetros, os clichês retornam camuflados e são enfiados goela abaixo do público. Nasce, assim, uma legião de consumidores de arte padrão, imbecilizados, devotos de uma falsa arte incensada pelos críticos de plantão.
Em períodos como este as boas narrativas não encontram espaço, os clicks inteligentes das máquinas fotográficas são desprezados e a boa poesia é substituída pela versificação sem sentido que passa por avançada.
Os verdadeiros talentos? Resta-lhes procurar outra profissão.
Os críticos? Deixam de existir ou sucumbem no solo movediço do “nem sim, nem não”.
E a arte, a verdadeira arte? Ora, a arte…
Se não existe um consistente movimento a refutar, a produção artística ou segue o seu curso normal ou corre o risco de perder-se de si mesma. Na última hipótese verifica-se o triunfo das nulidades, como já dizia o bom e sábio Rui Barbosa.