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Favores
Hoje em dia, talvez pela correria do dia-a-dia, pouca gente se inclina a prestar favores. Mas, há quem nos peça isso ou aquilo, muitas vezes colocando-nos em situação nem sempre agradável.
De que o brasileiro de hoje é diferente daquele do passado não restam dúvidas. Consequência do capitalismo selvagem? Talvez. Acontece que situações que mexem com o bolso da gente acabam sendo muito difíceis de aceitar. Mas, creio ter havido tempo no qual as pessoas se sentiam mais inclinadas à ajuda ao próximo. Ao longo da minha vida, por exemplo, encontrei pessoas medularmente boas que me ajudaram em momentos difíceis.
Confesso que acho constrangedoras essas situações a que ficamos expostos ao parar o carro em faróis fechados. Existe aquele rapaz vendendo balas, a moça que faz mágicas com uma bolinha de tênis, a mãe maltrapilha que carrega uma criança no colo, o deficiente físico que se arrasta pedindo ajuda, a idosa que traz na face impresso o desespero de uma vida miserável. Todos eles suplicam por uma moeda, uma só moedinha que, no fim das contas, não nos fará nenhuma falta. E essa moeda poderá servir para comprar um pão, matar a fome de um nosso semelhante a quem a sorte não ajudou. Isso é o que se passa na nossa cabeça enquanto torcemos para que o sinal finalmente se abra e aceleremos o carro, deixando para traz aquela situação que nos constrange.
Para falar a verdade quase nunca atendo aos pedidos das pessoas que me pedem ajuda ao parar nos sinais. O meu maior problema é o receio de abrir o vidro dado que, em geral, fica-se cercado por motos e todo mundo sabe a quanta anda a violência nas nossas cidades. Por outro lado sei das campanhas que pedem aos cidadãos que não deem esse tipo de esmola e dos avisos sobre crianças exploradas por marginais que arrecadam dinheiro nas ruas. Mas fica a sensação de desconforto, a humanidade que nos impele a ajuda ao próximo.
Dias trás me aconteceu ajudar a uma mulher acompanhada de duas crianças que a seguiam segurando-a pelo vestido. Como eu não tinha trocados passei a ela uma nota de valor um pouco mais alto. Ao receber o dinheiro os olhos da mulher encheram-se de lágrimas. Depois ela se foi, levando atrás de si a prole faminta. Desde então aquele rosto, a face agradecida e comovida, não me saem da memória.
México-70
Nada a ver com a inesquecível conquista pelo Brasil da Copa do Mundo realizada em 1970 no México. Trata-se da favela México-70 localizada na cidade litorânea de São Vicente. Por volta das 3h da madrugada houve início de um incêndio que destruiu mais de 100 barracos, deixando desalojadas mais de 200 famílias. Os que perderam seus barracos estão agora numa escola e a prefeitura promete ajuda de R$ 400,00 mensais para que possam alugar um imóvel.
No mundo das informações que chegam a cada instante certamente não se dá muita atenção a uma tragédia como essa. Recebemos a notícia de que houve um incêndio na favela, sem vítimas, e logo nos esquecemos disso. Pensa-se no assunto durante o tempo de leitura do jornal, sentimos a dose de pena que o fato nos provoca é isso e tudo. A vida segue em frente, cada um tem os seus problemas, salve-se quem puder.
Mas as coisas não se passam assim tão ligeiras quando a desgraça se aproxima da gente. Notícias que se transformam em pessoas de carne-e-osso afetadas por um incêndio deixam de ser apenas informações e tornam-se realidades palpáveis.
Acontece que um dos funcionários da limpeza do prédio onde moro é um dos que tiveram seu barraco destruído pelas chamas na Mexico-70. Ouvi-lo falar sobre o fogo e a situação em que se encontrava no momento com sua mulher e filho é muito mais que constrangedor. Contou-me ele que dormia quando foi acordado por pessoas gritando. Saindo à porta do barraco pode divisar o fogo que avançava na sua direção. Disse que a sensação de ver o fogo consumindo a moradia de tanta gente e vindo para o seu barraco é coisa simplesmente incrível. Ele mal teve tempo de acordar a mulher e o filho para, em seguida, correrem. Saíram a tempo de se safar do fogo que já atingia o barraco.
Perderam tudo. Exatamente tudo do quase nada que possuíam. Restaram as roupas do corpo e o desespero. Agora estão alojados na escola, esperando que a prefeitura os conduza a algum lugar onde possam morar.
A história do rapaz suscita divagações a começar pela desigualdade social e existência da pobreza. Admiro nele a aceitação da desgraça como componente natural da vida. A esperança de que no fim as coisas se ajeitarão demonstra invejável pertinácia.
Quando me despeço dele ouço que além do mais perdeu uma televisão - dessas de tela fininha - que comprou e ainda restam trinta prestações a pagar. Era ela, além do fogão, o bem mais valioso que tinham em família.
Passo o dia com essa história na cabeça, não consigo me desvencilhar da imagem do rapaz que perdeu tudo no incêndio da México-70. Rapaz trabalhador que sempre vejo a toda manhã e me cumprimenta com um sorriso de bom-dia.