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O avesso da arte
Aqueles quadros emoldurados colocados pouco acima das mesas do restaurante incomodavam. Junto da mesa em que eu estava havia um deles, de tamanho médio, no qual figurava uma paisagem. O autor pintara na tela algo que seria um campo de capim gordura no meio do qual se destacavam algumas árvores. Árvores mal ajambradas - é bom que se diga. Quanto ao capim as primeiras folhas - mais próximas dos olhos do observador - até que eram mais ou menos bem desenhadas. Delas podia-se dizer que de fato sugeriam que fossem de capim. As do fundo misturavam-se, não passando de um conjunto desarmonioso de rabiscos que se fundiam num traço verde grosso e desproporcional a todo o resto. O quadro não trazia o nome de quem o cometeu, mas abaixo dele se via um cartãozinho, preso à parede com uma tachinha, no qual se lia: PAISAGEM. Preço: 250,00.
Estava, pois, à venda aquele avesso da arte que alguém certamente pintara para se divertir em momento de ócio. Há quem se dedique a atividades como pintura apenas para aliviar as próprias tensões e colocar-se acima do comum dos mortais. Nesta variante humana repousa a ilusão de “ser artista”, ainda que não reconhecido. Um vizinho de casa em que morei jamais teve qualquer bossa para vir a ser músico, mas se acreditava um deles e dos bons. Toda noite sentava-se ao teclado e barbarizava as notas com dissonâncias assustadoras. Eu o ouvia, noite após noite, até eu me mudei. No dia em que ele viu o caminhão de mudanças na minha porta apareceu para se despedir e ousou perguntar-me se eu costumava ouvi-lo tocando. Achei melhor não responder e fui embora. Nunca mais voltei àquela rua, risquei-a do mapa tal a aversão que o som daquele maldito teclado me causou.
Mas, o “artista” que pintou os quadros exibidos no restaurante na verdade é meu velho conhecido. Homem simples começou como pintor de paredes atividade na qual não se destacou como profissional de boa qualidade. Mais tarde trabalhou em outros ramos até que passou a pintar quadros nas horas vagas. Certa vez, conversando com ele, perguntei se alguma vez fizera algum curso e ele me disse que não. Nomes como Gauguin e Picasso eram para ele totalmente desconhecidos.
Ouso dizer que os quadros do meu conhecido não podem ser considerados de qualidade porque realmente falta a eles um pouco de tudo que a pintura exige. Mas, se a minha opinião estiver correta como se explica que ele continue produzindo e venda suas telas mal acabadas? Na verdade entre ele e os compradores existe um intermediário capaz de garantir aos incautos que o que está nas telas é considerado primitivismo da melhor cepa. Conversa vai, conversa vem, e o bom vendedor passa para frente a produção do antigo pintor de paredes.
Você pode duvidar do que estou dizendo ou achar que tenho motivos escusos para não gostar dos quadros aos quais me refiro. Mas, não se engane: eles são ruins mesmo. Coisa que, aliás, pouco importa porque o pintor está feliz com sua produção, há demanda do que pinta e compradores ocasionais ficam bem satisfeitos em pendurar as telas dele nas paredes das suas casas.
É assim que funciona.