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Ninguém pode morrer
O amigo me diz: não posso morrer.
Aos setenta ele teme pelo que há de vir. O inexorável. A inesperada visita do ceifador. O fim.
Ele explica porque não pode morrer. Muita gente depende dele. É arrimo de família. Os filhos, já adultos, ainda não se resolveram. Que será deles sem o pai? A ex-mulher que não se sustenta sozinha? O amor acabou, a fraternidade continua. Como viverá ela sem ele que a sustenta? Não esquecer outras pessoas a quem empresta solidariedade, ajuda, até conselhos. Enfim, a morte dele abrirá um precipício na vida de muita gente.
Digo ao amigo que na verdade ninguém pode morrer. Cada um dentro de sua circunstância tem lá haveres e débitos. A vida é por demais preciosa para cada ser humano, ainda mais quando tomada pelo ângulo das relações entre pessoas. Há sempre alguém a se deixar, situações não resolvidas, encargos. Como simplesmente não mais existir?
Conversa vai, conversa vem, as palavras do poema de Drummond caem entre nós como consolo:
A vida te venceu
Em luta desigual.
Era todo o passado
Presente presidente
Na polpa do futuro
Acuando-te no beco.
Se morres derrotado,
Não morres conformado.
Mas, e os suicidas? Esses podem morrer? Não será que o último ato, o extremo, nada mais é que ajuste de contas com a vida mal vivida à qual se quer mortalmente ferir?
Não existem respostas. Vida e morte são os maiores temas do grande teatro da existência humana.
Tarde da noite o amigo parte, sem se despedir. Tornará amanhã, no mesmo horário. Como sempre estará defronte, meu rosto no espelho, cismando sobre a proximidade da morte.
Não existem respostas
Aos 80 anos, a maioria deles dedicados à doutrinação e ajuda aos semelhantes, o velho cristão inquieta-se com a proximidade da morte. Em vão busca nos evangelhos respostas para sua crise existencial. Afinal, o que o espera após cerrar os olhos? O esperado encontro com Deus de fato acontecerá?
Não é o caso de suspeitar-se de que a fé do cristão vacile. De modo algum. Mantem-se aferrado aos dogmas e à doutrina que o fez ser o homem que é. Conhece a fundo a alma dos fiéis com os quais labutou vida afora. Ensinou e propagou a fé cristã tantas vezes até mesmo em situações adversas. Socorreu a muitos e esteve ao lado de moribundos até o momento final. Mas, que pensar agora que a sua vez que se aproxima? Como será o momento em que tudo o que ele acredita será colocado à prova?
Conheço o velho cristão há muito tempo. Homem bom e sério não creio que vacile em sua fé. De tempos para cá a saúde tem-lhe pregado peças. O médico advertiu-o sobre os problemas do coração que já não suporta a carga de sustentar o organismo. Percebe-se no cristão, às vezes, alguma dificuldade respiratória. Ainda assim, permanece lúcido e confiante. Mas, pressente que a morte o espreita e isso o incomoda.
Converso com o velho cristão. Trocamos ideias e falamos sobre a vida. Ele destaca o avanço da idade e a saúde precária. A certa altura deixa escapar a preocupação com o destino de sua alma após a morte. Merecerá ele o céu? Terão seus pecados mais peso que suas virtudes? Como será o julgamento final de seus atos?
Pergunto ao cristão se em seus questionamentos não se inclui o da possibilidade de a morte ser o fim, nada existindo depois. Ele me olha com aspecto de desolação. A hipótese remota de a morte encerrar tudo é inaceitável.
É um fim de tarde na grande casa, antigo colégio, onde o velho cristão convive com outros idosos para viver seus últimos anos. Ao fim de minha visita abraçamo-nos. Tenho vontade de dizer a ele sobre a inutilidade das perguntas que o atormentam. Mas, me calo. De nada valeria afirmar que não existem respostas.