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Ainda e sempre o racismo
Infelizmente não há novidades na justificativa ideológica para o hediondo ataque terrorista perpetrado na Noruega. Pode-se até mesmo dizer que Anders Behring Breivik, autor dos atentados, é só um novato no terreno das ideias que professa, nada havendo de original no manifesto de 1500 páginas no qual buscou sedimentar as razões da sua ação. E foi em nome de velhos e conhecidos preconceitos, os quais infelizmente ainda contam com inúmeros adeptos, que Breivik ceifou a vida de muitos inocentes. Para completar esse trágico quadro de atrocidades há o fato de o próprio Breivik colocar-se na posição de um herói que lamenta, mas não se arrepende de seu ato a seu ver necessário. O que ele pretendia era chamar a atenção de seu país e da Europa sobre a invasão mulçumana. Racismo puro contra etnias de origem muçulmana, repetição de perigosas fobias contra imigrantes e, pior que isso, recrudescimento extemporâneo de ódios raciais que resultaram em banhos de sangue durante o século XX, vide as atrocidades praticadas contra judeus pelos nazistas.
Mas, de onde vem esse ódio que se traduz em preconceito, tantas vezes descambando para ações extremadas e absurdas? Não cabe neste espaço destinado a breves considerações a exposição detalhada do longo caminho trilhado pelas ideias preconceituosas e racistas. Entretanto, vale lembrar que a composição étnica da população de há muito tem sido vista como fator determinante do modo de vida e mesmo possibilidades de crescimento e desenvolvimento de um país. É assim que, fundando-se na noção de superioridade e inferioridade biológica, perseguições e crimes hediondos, tendo por justificativa razões étnicas, têm sido cometidos. O empenho, no passado, de pessoas de ciência para fornecer argumentos que justificassem a escravidão negra é apenas um dos exemplos das múltiplas facetas que o preconceito pode assumir a serviço de interesses específicos entre os quais se sobressai o de dominação.
Entre as varias teorias utilizadas para caracterizar diferenças raciais e a inferioridade de algumas raças merece destaque a questão da miscigenação por muitos considerada como grande ameaça ao futuro da humanidade. Nesse sentido o Brasil sempre esteve à frente como exemplo de país onde a excessiva mistura de raças teria gerado uma população destinada ao fracasso. Durante o Segundo Império esteve no Brasil, na condição de embaixador da França, o Conde de Gobineau que privou da amizade do imperador D. Pedro II. Gobineau pregava a superioridade da raça ariana à qual creditava a evolução da civilização. Por outro lado, condenava a miscigenação que resultaria no enfraquecimento da raça superior - a branca. Lembrando que a população brasileira era formada por mestiços, mulatos, cafusos, mamelucos, caboclos, enfim homens de cor, Gobineau afirmava ser simples constatar que tratava-se de gente “nem laboriosa, nem ativa, nem fecunda”, tudo isso resultante da miscigenação. Daí viverem em condição de barbárie, com comportamento grotesco e distante dos hábitos do mundo civilizado. Prevalecia, portanto, a noção de que cruzamentos entre indivíduos de raças diferentes originam seres híbridos, mais fracos e menos dotados.
Mas, Gobineau é só um exemplo. A separação da humanidade em grupos, havendo entre eles hierarquia quanto à superioridade e inferioridade racial, permaneceu como verdade científica ainda no século XX, sendo que mesmo a elite cultural brasileira do início daquele século comungava com essa ideia. Daí a crença, ainda na década de 20 do século passado, de que seria necessário um branqueamento da população brasileira para que fosse possível um avanço do país. Aliás, considerava-se esse avanço inevitável dada a superioridade inata dos brancos. Não é de se estranhar, portanto que, em seu manifesto, Breivik tenha citado por várias vezes o Brasil como exemplo de lugar onde houve grande miscigenação, devendo-se impedir que o mesmo venha a suceder na Europa. Afinal, desde meados do século XIX o Brasil chamava a atenção de escritores estrangeiros, sendo citado como exemplo de algo que não dera certo em termos étnicos, experiência a ser observada e que não deveria se repetir no futuro.
Os séculos XIX e XX foram pródigos em associações entre avanços científicos e teorias que os incorporaram inadequadamente para justificar diferenças entre os seres humanos. Seria longa a citação de pensadores que se dedicaram ao assunto. Para ficar apenas com alguns podem ser lembrados: o escritor inglês Buckle para quem o clima influiria sobre as raças humanas, sendo que a civilização estaria restrita às áreas frias; os defensores do darwinismo social como Spencer, Haeckel, Gumplowicz e Lapouge que se apropriaram do evolucionismo para legitimar políticas de dominação sobre asiáticos e africanos.
O covarde ato de Breivik é sintoma do crescimento da extrema direita cujos antecedentes históricos são de triste memória. Infelizmente não se trata de atitude isolada, praticada por um desiquilibrado. Breivik fez o que fez por convicção e certamente terá encontrado aprovação entre muita gente que pensa como ele. O mal, como se sabe, age insidiosamente, espalha-se, recruta mais adeptos e oferece o risco de tornar-se rotina daí a necessidade de cortá-lo pela raiz.
Populações Meridionais do Brasil
Assunto mais que discutido é o que se refere à imensidão territorial do Brasil abrigar tão grande diversidade populacional. Resultou ela da mais formidável miscigenação de etnias, combinando-se de diferentes modos o branco europeu, o índio nativo e o negro africano para cá trazido com escravo.
É vasta a bibliografia sobre o assunto, passando-se pelos textos de eminentes sociólogos e historiadores que se ocuparam da interpretação do Brasil. Alguns desses estudos são hoje desprezados, tantas vezes com razão dadas inclinações nem sempre toleráveis de seus autores. Existe entre eles os que incluíram em seus trabalhos teorias como a do racismo para explicar a formação do povo brasileiro sob a preponderância e superioridade da raça ariana.
Criticado, mas nunca esquecido, é Oliveira Vianna que se destacou como cientista social, resvalando com alguma profundidade no ofício de historiador. Mas, a atuação de Oliveira Vianna não se restringiu aos livros que escreveu. Conservador exaltado e adepto da centralização e controle do Estado sobre as atividades do país foi ele muito operante como assessor do presidente Getúlio Vargas, mormente depois da instalação do Estado Novo, em 1937. Jurista, teve ativa participação com decisivos pareceres que resultaram na instituição da Justiça do Trabalho e a Consolidação das Leis do Trabalho.
Dos livros que Vianna escreveu o mais importante é, sem dúvida, “Populações Meridionais do Brasil”, publicado em 1920. Trata-se do estudo do matuto, o homem das matas. Vianna planejava publicar mais dois livros sobre a mesma temática: o segundo seria sobre o gaucho, o homem dos pampas, e o terceiro sobre o sertanejo, o homem dos sertões. O segundo livro foi publicado postumamente e o terceiro Vianna não chegou a escrever.
“Populações Meridionais do Brasil” é grande demais para o quer dizer. Girando em torno das mesmas idéias, o livro fala sobre a aristocracia rural de cujo domínio e relacionamentos dependem os desajustes da sociedade colonial. Vianna parte da idéia errônea de que o Brasil foi colonizado por gente fidalga, aristocracia racialmente superior, agindo segundo preconceitos autoritários com os quais comunga o escritor. Autoritarismo e racismo, portanto, corporificado nos bandeirantes paulistas, um tipo superior também encontrado em outras regiões. Obviamente não se pode reconhecer nos bandeirantes paulistas que se embrenharam pelos interiores do Brasil a fidalguia pretendida pelo escritor.
Entretanto, “Populações Meridionais do Brasil” foi bem aceito em sua época, embora hoje possa ser classificado como pertencente à infância da sociologia brasileira. Não se pode negar ao autor método e a preocupação latente em explicar o Brasil, para isso invocando acontecimentos históricos obtidos nem sempre de primeira mão. Criativo, fantasioso, eivado de preconceitos, apegado ao autoritarismo, acreditando na superioridade ariana, ainda assim trabalho de vulto, de pensador das coisas do Brasil.
Oliveira Vianna é importante porque suas idéias foram trazidas à tona em momentos históricos nos quais o autoritarismo transformou-se no carro chefe de governos. Pode-se conhecer melhor o escritor e sua obra através de vários livros sobre os intérpretes do Brasil, encontrados facilmente nas livrarias. Caso haja interesse, “Populações Meridionais do Brasil” pode ser encontrado em sebos.
Mundo careta
Você se lembra do Long Dong Silver? Não? Era um “negão” que fez grande sucesso por aqui por ser portador de um pirulito enorme. Na época discutia-se sobre a quantidade de sangue necessária para preencher os corpos cavernosos e deixar o pirulito ereto. Haveria, quando isso acontecesse, falta de sangue no cérebro, gerando algum tipo de apoplexia?
O detalhe é que se podia falar sobre esse assunto a gosto. E escrever sobre ele. E podia-se grafar a palavra “negão” sem temer acusações de racismo. Em 70, o técnico da seleção, João Saldanha, referia-se a Pelé como “Negão”. Long Dong pertenceu a essa época. Se você duvida da existência dele entre no Google e digite “Long Dong Silver”. Aparecerão – e não “vão aparecer”, com o verbo auxiliar hoje tão na moda – fotos de um “colored” com um pirulito que alcança os joelhos.
Naquele espaço de tempo o mundo não era tão careta como hoje. Nem as famílias e mocidade tão conservadoras. Olha aí, vivemos hoje em dia num universo de conservadores, regulados por uma “regra” mais dura que aquela ditada por São Francisco de Assis aos seus seguidores. Se você não conhece a figura de São Francisco um ótimo caminho é começar com o texto de G. K. Chesterton sobre o grande santo protetor dos animais.
Aliás, você sabia que anos atrás as imagens de São Francisco traziam, numa das mãos do santo, uma caveira? E que por ordem papal a caveira foi substituída por um pombo? Quem duvida que visite as igrejas setecentistas de Minas Gerais: encontrará imagens de São Francisco segurando a caveira numa das mãos.
Voltando à caretice do mundo atual: os jovens dos sessenta, setenta e até oitenta faziam parte do jogo, acredite. Entediam as mensagens da maluquice e compreendiam a vida como processo aberto a muitas variantes de atitudes, até mesmo as aparentemente inexplicáveis. Na televisão brasileira, Chacrinha era um ícone do escracho bem nacional, continuidade do desrespeito ostensivo ao regular, ao imposto, ao monótono, à mesmice, ao federado, ao institucional, ao bem acabado. Esse era um mundo que vinha do rádio, da piada endereçada a todos e a ninguém, o riso sem ofensa ainda que ofendesse a algum incauto surpreendido em pleno ato de qualquer conservadorismo.
Hoje é diferente. Tudo é ofensa, tudo é interpretado como agressão, tudo é racismo, tudo vira processo e existem por aí causídicos que vivem à custa de impropriedades ditas ou escritas. Tempos caretas os atuais, tempos de normas, tempos de conservadorismo caústico no qual a defesa da honra não desonrada tornou-se um grande negócio.
É preciso reagir, recolocar as relações entre pessoas nos trilhos. É preciso devolver o riso fácil às pessoas para que possam agir com propriedade, sem medo de ofensa. É preciso devolver o sentido às boas piadas, reduto da alma nacional que costuma rir das desgraças, sem que se dê a elas conotações de agressão.
É preciso evoluir em direção ao passado e devolver a alegria ao dia-a-dia do povo brasileiro.
É preciso rir.
É preciso, é preciso… “Poema das Necessidades“ de Carlos Drummond de Andrade.
Abaixo o conservadorismo!