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A excomunhão
Nos idos anos 60 do século passado pertenci a uma congregação católica a mando de minha mãe. Sai de opa em procissões e participei de reuniões na igreja após a missa das 10 horas aos domingos. Os congregados tinham um chefe que cuidava da congregação e falava aos companheiros durante as reuniões. Às vezes o vigário da paróquia aparecia nas reuniões, sempre em rápidas passagens que outro motivo não tinham que o de manter os congregados ligados à igreja.
Não sei se por ordem do vigário ou exigência da própria igreja eram os congregados obrigados a obedecer a algumas regras. Eram frequentes, por exemplo, a participação dos congregados em retiros espirituais em geral organizados em épocas nas quais os convites ao pecado eram maiores. Esse era o caso do carnaval, festa pagã da qual de modo algum um congregado poderia participar. Aliás, os congregados sabiam muito bem que ir a um baile de carnaval representaria a expulsão da congregação.
No primeiro ano em que fiz parte da congregação fui convidado a participar de um retiro espiritual que ocorreria justamente durante o período de carnaval. Tinha eu na época pouco mais de 14 anos e andava muito interessado numa colega de escola da mesma idade que a minha. Por essa razão aleguei não poder participar do retiro embora soubesse que de modo algum poderia frequentar os bailes de carnaval. Foi assim que durante três noites de carnaval fui até o clube onde se deram os bailes, mas não entrei. Sabia que a coleguinha de quem gostava estava lá dentro, sambando, mas que fazer se estava impedido de participar?
Entretanto, na noite de terça-feira de carnaval aconteceu da minha colega sair à rua e me arrastar para dentro do salão de baile. Obviamente, não ofereci resistência de modo que minutos depois lá estava eu, pulando com ela, feliz da vida, esquecido de meu compromisso com a congregação.
Terminado o carnaval disseram-me que eu seria não só expulso da congregação como excomungado da igreja. Obviamente, tratava-se de um exagero, mas aos 14 anos de idade aconteceu-me acreditar e temer tão grande punição. No fim fui desligado da congregação, expulso para vergonha de minha mãe. Mas ficou-me na cabeça a grandiosidade do que representaria a excomunhão, pois, com ela, estariam fechadas para mim as portas da salvação. Pelo menos foi assim que entendi a situação naquela época.
Lembrei-me dessa história hoje ao ler que um padre de Bauru foi excomungado por professar ideias contrárias às preconizadas pela religião católica. Consta que o padre afirmou ser possível o amor entre pessoas do mesmo sexo fato que de modo algum a igreja católica admite dada a condenação da mesma igreja ao casamento entre gays. O padre foi instado a tornar atrás em suas declarações, mas negou-se dizendo que ainda bem que hoje em dia não mais existem as fogueiras para queimar os dissidentes.
O padre excomungado era benquisto pelos fiéis de sua paróquia. Celebrou uma missa de despedida à qual compareceram muitos fieis, lotando a igreja.
Mais cedo ou mais tarde a igreja terá que se definir em relação a certas modernidades as quais simplesmente não têm volta. Trata-se de um fio de navalha com muito corte, difícil de ser evitado num momento em que a igreja católica perde muitos fiéis para as suas concorrentes evangélicas.
Domingo de Ramos
Fui criado num meio em que todos os símbolos da crença católica eram valorizados. Isso ainda acontece nas cidades do Brasil, embora já não se tenha tanta certeza na fé do povo.
Das celebrações da Igreja Católica, a do Domingo de Ramos é das mais marcantes. Nas missas celebradas nesse domingo os fiéis têm seus ramos – folhas de palmeiras ou outras plantas – bentas pelo sacerdote. Depois os ramos bentos são levados para as casas onde permanecem como uma espécie de amuleto.
Mas, o que se comemora neste domingo? Festeja-se a entrada triunfal de Jesus em Jerusalém. Essa comemoração precede os rituais da Semana Santa. Aliás, disso eu não sabia em meus tempos de menino, quando ia com minha mãe à missa do Domingo de Ramos.
Desses domingos ficaram-me os rituais: a escolha das folhagens, a ida à missa, a benção dos ramos e, depois, o ato de guardá-los em casa. Ficavam em alguma gaveta, muitas vezes esquecidos, até que a possibilidade de alguma desgraça surgisse. Então minha mãe recorria aos ramos que funcionavam como anteparo contra algo de mau que poderia acontecer.
Ficou-me desse tempo a ligação entre os ramos bentos e as tempestades. Quando o céu se carregava de nuvens negras e o dia parecia transformar-se numa noite, quando trovões e raios anunciavam as grandes tempestades, então era hora de se apelar para os ramos. Cobriam-se espelhos com panos e queimavam-se alguns ramos, forma de rogar proteção contra os perigos da chuva.
Não sei se ainda é assim por esses interiores do Brasil. Há muitos anos deixei de ir à missa do Domingo de Ramos e já não me inquieto com as tempestades. Entretanto, hoje vi uma senhora na calçada, provavelmente vinda de uma missa. Trazia na mão um chumaço de ramos. Ao vê-la pude tornar ao menino que fui e crer na proteção dos ramos. Mas, continuei o meu caminho e logo a imagem da mulher e dos ramos cedeu lugar à confusão, ao barulho das buzinas cobrando a um guarda que deixasse o trânsito fluir na rua onde estávamos.
Quando os anjos dizem amém
Quando menino minha mãe me repreendia se eu dizia algo de que poderia advir alguma má sorte ou catástrofe. A palavra “azar” meio que era proibida. Tudo funcionava segundo aquele lema de “não tomar o seu santo nome em vão”, coisa associada ao pecado.
Se eu dizia algo como “quero que se arrebente”, pronto, aí vinha a reprimenda dada a possibilidade de os anjos dizerem amém. Coisas para as quais os anjos dizem amém simplesmente acontecem, essa a regra. Se eu digo “melhor é morrer” o problema está na aquiescência dos anjos. Se não estiverem ocupados, distraídos, jogando cartas, por exemplo, e ouvirem corre-se o risco de dizerem amém. Daí você morre.
De modo que não há meio de negociar com a vontade dos anjos – há quem diga que a única exceção seria o anjo da guarda. Dependemos do acaso de estarem por perto ou de nossos impropérios atravessarem estâncias infinitas e chegarem até eles. Existirão, sim, anjos judiciosos que talvez levem em conta nossos estádios emocionais e nos desculpem por algum desafogo expresso em palavras. Também é possível que existam anjos preguiçosos que deixarão para depois a merecida punição e terminarão por se esquecer dela. Entretanto, se o mundo de lá não passar de réplica deste que em que vivemos – com apregoam algumas religiões – também existirão anjos alforriados em juízes, loucos por aplicar sentenças até mesmo sem ouvir instâncias superiores das quais se libertaram. Esses seriam os piores, aqueles que são responsáveis pela maior parte das tragédias que acontecem nesse mundo.
Do que sempre discordei de minha mãe. O fato é que ao meu entendimento sempre pareceu muito estranho que anjos digam amém apenas para que coisas ruins aconteçam. Se eu digo, por exemplo, “vou ganhar na loteria”, realmente torna-se alarmante o silêncio dos anjos. Para coisas assim, que modificariam para muito melhor a vida da maioria das pessoas, parece que os anjos são surdos. Tá bom que as coisas sobrenaturais sejam inexplicáveis, que a lógica que conhecemos não se aplique em instâncias não humanas, mas, cá entre nós, não é estranho?
Pois semanas atrás aconteceu de uma mulher ganhar em três loterias diferentes. Esse fato incomum por si só desperta muita curiosidade. Como pode uma determinada pessoa vir a ser agraciada com tamanha sorte? Teria ela feito algum pacto? Seria ela algum tipo de delfim do agrado de uma casta de anjos? Por que milhares de pessoas apostam diariamente em jogos de azar e poucos são premiados? Ou o melhor é aceitar a lógica de probabilidades que conhecemos, permanecendo circunscritos aos fatos do nosso mundo, sem admitir interferências externas, inclusive a de anjos?
Não sei. Ultimamente cheguei à conclusão de que não custa nada apostar no improvável em termos de sorte. Também me parece que a oposição obstinada à possível participação dos anjos em várias circunstâncias da vida não leva a nada. Daí que passei a repetir, diariamente, que vou ganhar na loteria. De repente os anjos ouvem e dizem amém…
Ia terminar dizendo que há mais coisas entre o céu e a terra… mas o dia não está para clichês. Agora pouco a cidade foi encoberta por densa neblina e não faz muito começou a soprar um vento forte, vindo do mar. O vento faz as janelas baterem, produzindo sons estranhos, talvez sussurros ininteligíveis. Seriam respostas de anjos a um incrédulo que diz bobagens sobre eles?
João Paulo 2º
As imagens sobre os preparativos para a beatificação de João Paulo 2º impressionam. De modo algum pretendo me imiscuir no processo que leva aquele que é considerado um dos maiores papas a ser beatificado. João Paulo 2º construiu, durante o seu papado, imagem sólida de homem correto e integrado ao mundo do tempo em que viveu. Mais que seus imediatos antecessores, dignificou o cargo que ocupou, merecendo o grande respeito dedicado a ele em todo o mundo. Nele a igreja encontrou o papa que fortaleceu os alicerces da religião, adaptando ao limite do possível - sempre freado pelos dogmas - a instituição católica aos novos tempos. Líder inconteste ocupou o trono de São Pedro e, ao morrer, deixou saudades.
Nada demais, portanto, reconhecer nele a possibilidade de santificação, daí a atual beatificação que deverá ocorrer no próximo domingo. Para esse grande evento prepara-se o não só o Vaticano como a cidade de Roma. Grandes cartazes, um deles no Coliseu, imagens e lembranças de João Paulo 2º estão por toda parte. Mas, o que mais chama a atenção é a necessidade da presença do esquife do papa morto no momento da beatificação. Para isso, foi retirado de sua tumba o caixão com os restos mortais do antigo papa. A gravidade do momento em que os operários ergueram o caixão impressionou. A presença de prelados da igreja e dos operários em atitude de profundo respeito sugeria que a cada um deles era patente a certeza de que estavam a lidar com um santo. A cena evocava cerimônias de ressuscitamento, como se da tumba mais uma vez se erguesse para vir ao mundo o antigo comandante, aquele que deixara um interino em seu lugar e, por força maior e incompreensível, retornasse.
É bom lembrar que para os fiéis João Paulo 2º não está morto. Vive espiritualmente e certamente é dotado de grande luz. Essa intensa luz parecia se espalhar no ambiente em que João Paulo 2º era guindado para o mundo dos vivos. Agora seu esquife espera, sobre a tumba de São Pedro, o momento de ser levado ao local da beatificação. Ombros fortes o carregarão, certamente em silêncio. É a um santo que conduzirão e nisso residirá toda a magia da sacralidade do momento.
Para os católicos de todo o mundo a beatificação de João Paulo 2º se constituirá num grande momento de renovação da fé.
Por quem dobram os sinos?
Assim como o poeta fui criado ao som dos sinos. Tinham eles papel preponderante na vida da comunidade, funcionando como marca-passo a ditar o ritmo dos dias. Havia o toque de acordar das seis da manhã, o chamado para as missas das oito e das dez aos domingos, a hora do Ângelus às seis da tarde, o toque fúnebre e pausado que anunciava o réquiem dos mortos, o repique agudo e corrido das festas dos santos. A todos eles atendiam fiéis, chamados que eram às práticas religiosas.
Hoje em dia, em muitos lugares, os sinos já não dobram como antigamente. Na minha cidade um padre moderno substituiu os repiques da minha infância pelo som gravado de carrilhões das grandes catedrais. Assim, os fiéis são alertados pelo som de sinos não ligados às suas tradições e que não lhes dizem respeito.
Mas, isso não é o pior. Recentemente os bons de velhos sinos das igrejas tornaram-se objeto de desejo de ladrões: nos últimos dias foram roubados sinos de algumas igrejas do Vale do Paraíba. Para dizer a verdade, não imagino como possa ser a ação de uma quadrilha de rouba sinos. Acontece que sinos são grandes e pesados, como, então, podem ser subtraídos das torres, trazidos ao chão e levados sem que ninguém se dê conta do crime? Nenhuma testemunha? Não sabem esses desalmados ladrões que, mais que os próprios sinos, estão levando as memórias de várias gerações que deixaram-se guiar pelas badaladas das igrejas?
Roubaram o sino da minha cidade. Não sei para onde o levaram. Pois parte da minha vida está ligada a esse sino desaparecido. Ele era talvez, uma das últimas ligações materiais que eu tinha com a minha mãe, falecida há tantos anos. Era o repique dos sinos que nos levava, juntos a igreja, como se fôssemos atraídos por um tipo de código que nos unia e aos demais que acorriam às missas.
Mas, não é só isso. Notícia recente nos dá conta de que, finalmente, consertaram os sinos da Catedral da Sé, em São Paulo. A partir de agora o carrilhão, composto por 61 sinos, será acionado por um sistema digital. Então, depois de cinco anos quietos, os sinos voltarão a badalar na capital, mas não diretamente pelas mãos de alguém, embora também possam ser acionados manualmente ou através de um órgão.
Nunca pensei que sinos e tecnologia se dessem bem. De algum modo esse acionamento digital desmistifica toda uma escola de sineiros que ensinavam uns aos outros a arte dos diversos tipos de toque, adequados para cada ocasião. Era assim que, de geração em geração, mantinha-se a tradição. Mas, os tempos são outros, os tempos são outros.
Disse um padre da Sé que o som dos sinos representa a voz dos anjos chamando os fiéis para a igreja, lembrando-os da existência do Senhor. A partir de agora, na Sé, a voz dos anjos será acionada eletronicamente. Quem sabe um dia a tecnologia chegue ao ponto de abrir as portas do céu.
A crise da Igreja
Aprendi com os militares que o Exército é um corpo orgânico, corda para vibrar em uníssono. Numa instituição dessa natureza a ideia de tempo é relativa: passado e presente se confundem em torno da mesma arma e da defesa dos mesmos princípios. Existe, por detrás da farda, uma ideologia que reveste a cultura particular dos homens que a vestem. O cidadão deixa parte de si e sua crença pessoal para trás quando sob o desígnio da farda que confere a ele o sentido de corporação. O corporativismo fala mais alto, sobrepõe-se à individualidade.
Esse modo de ser é também observado na Igreja. Instituição milenar, a Igreja atravessou períodos difíceis desde que Pedro se tornou o primeiro papa. Foi combatida e perseguida, mas sobreviveu. Penou e fez mártires sob o jugo do Império Romano, escondeu-se, mas não deixou de existir. Sobreviveu aos impérios, ditou regras e perseguiu durante as trevas da Idade Média, exercitou seu grande poder através de concílios e a história do mundo seria totalmente outra caso a Igreja não existisse.
Quando se fala sobre crise na Igreja os que a defendem respondem com segurança: vai passar, como passaram todas as outras. A intuição é maior que os homens e os momentos históricos em que eles atuam. Além disso, tem a seu favor a fé, os mandamentos e a tradição de sacrifício e verdade. Se em algum momento parte seus membros sucumbiram ao pecado, se existem papas no inferno como quis Dante, a instituição não se abalou com isso. Resistiu justamente porque esse foi o caminho previsto por Deus, sacramentado pelas escrituras.
Tudo isso é bem conhecido e soa muito lógico. Entretanto, hoje em dia não é demais perguntar sobre o que se espera do futuro da Igreja. Os muitos escândalos em que têm se envolvido membros do clero realmente constituem-se num desafio à estabilidade de tão antiga instituição. Nos últimos tempos inúmeros casos de pedofilia entre membros do clero tornaram-se públicos, combalindo a confiança dos fiéis. Agora, aos conhecidos escândalos dos Estados Unidos e da Áustria, vêm se somar a descoberta de casos na Irlanda. Um relatório aponta 488 queixas de casos de pedofilia, ocorridos entre 1950 e 1980, com terríveis consequências para as crianças, hoje adultas. Basta dizer que treze das pessoas que sofreram abusos por parte de padres suicidaram-se. Considere-se, ainda, que a pesquisa refere-se a casos passados e envolve pessoas adultas que só agora se dispuseram a falar sobre o seu sofrimento. Isso quer dizer que nada se sabe sobre a situação atual, sendo justas as preocupações de que casos de pedofilia continuem acontecendo.
São esses fatos lamentáveis que, trazidos à luz, nos fazem ponderar sobre a situação atual da Igreja. Por que a ocorrência de tantos casos de pedofilia no seio da instituição? Só o tempo nos trará respostas para essas e outras indagações sobre fatos que indignam a opinião. Enquanto isso se espera por muita vigilância e punições e não só nos cleros de países até agora declaradamente envolvidos em escândalos sexuais.
Esse é um caso em que orar para que não aconteçam desgraças parece não estar dando muito certo, daí a necessidade de ações rápidas e preventivas por quem de direito e responsabilidade.
Verônica chorando
A liturgia da semana santa parece ter perdido muito do impacto de anos atrás. A sacralidade, o envolvimento dos fiéis e a própria fé cederam lugar a representações que parecem carecer da antiga convicção.
Verdade seja dita, nos interiores do Brasil, em pequenas cidades, a teatralidade que representa o martírio de Jesus mantém-se viva, embora também tenha perdido algo de seu anterior colorido.
Em criança a cena da semana santa que mais me impressionava era a de Verônica desdobrando o véu no qual está impressa a face de Jesus. Como se sabe através do texto bíblico, a Verônica é atribuído o ato de limpar o suor de Jesus durante o seu calvário. Desse fato deriva a presença de Verônica na procissão da semana santa: há um momento em que as pessoas param de andar e Verônica emerge, desdobrando o véu enquanto entoa um canto fúnebre.
Esse canto dolorido e profundo, expressão de uma dor incontida, aterrorizava-me em menino. Creio que essa impressão era ampliada pelo fato de eu conhecer a mulher que assumia o papel de Verônica. Era ela pessoa entristecida, soturna dentro da solteirice que perdurou até a sua morte. Trazia estampada no rosto uma espécie de interrogação sobre a sorte que a ela foi madrasta. Era esse lado trágico da existência dela que transparecia em toda a sua magnitude no momento em que a procissão parava e ela iniciava a sua representação com a face coberta por um véu preto. Naquele momento não se podia vê-la, mas era possível imaginar as contrações dos músculos faciais de um rosto que jamais fora bafejado pela beleza. Era dele que vinha aquela voz aguda e lamentosa que chorava o calvário de Jesus.
Anos mais tarde, voltei à cidade onde morei quando menino justamente durante a semana santa. Na noite de quinta-feira assisti à passagem da procissão e presenciei o momento em que Verônica fazia a sua parte. Era uma Verônica de voz solta, quase alegre, pelo jeito uma moça que se desincumbia do papel apenas como atriz. Na ocasião perguntei a um amigo sobre a antiga Verônica, aquela do canto triste. Ela me contou que ela morrera há alguns anos sem se afastar um só milímetro do perfil que sempre apresentara. Relatou-me o amigo que os que a conheciam sabiam do sofrimento real dela durante a semana santa. Passava ela a quaresma a preparar-se para o dia em que encarnaria a Verônica dos evangelhos. Então chorava muito como que tomando para si toda a dor representada na liturgia.
- Chorava sim. Imagine que chorava enquanto cantava com o rosto protegido pelo véu. Mas, sem dúvida ela foi a melhor das nossas Verônicas.
O meu amigo disse isso e se afastou, deixando-me imerso numa atmosfera nostálgica que sempre retorna na semana santa quando me lembro daquela face triste sob o véu escuro, entoando uma melodia fúnebre que parece não ter fim.
Por onde andam os materialistas?
Há muito tempo não ouço alguém dizer: fulano de tal não passa de um materialista. Pois houve período em que dizer uma coisa assim funcionava como um tipo de acusação. O rótulo “materialista” nem sempre condizia com uma postura filosófica, mas com um modo de ser visto como negativo. Evidentemente existe nesse modo de ver muita simplicidade, mas o materialismo serve muito bem à demonstração de como certos termos e doutrinas são incorporados ao cotidiano, sendo usados em geral de modo diferente de seu significado original. A lembrança das conotações da palavra “burguês” é mais que suficiente para ilustrar até onde esse tipo de coisa pode chegar.
Nicola Abbagnano no seu excelente “Dicionário de Filosofia” ensina que o termo “materialismo” foi usado, pela primeira vez, por Robert Boyle, em 1674. O termo designa, em geral, toda doutrina que atribua causalidade apenas à matéria. Ou seja: o materialismo consiste em afirmar que a única causa de tudo é a matéria. Nega-se, portanto, a existência da alma e do mundo espiritual ou divino.
Deixando de lado as várias formas de materialismo (metafísico, metodológico, dialético, histórico etc.) vamos ao ponto em que Abbagnano nos diz que o materialismo da metade do século XIX tem caráter romântico porque pretende ser uma doutrina de vida, destinada a vencer a religião e suplantá-la. Deriva daí o fato da Ciência ter sido transformada na nova tábua de verdade absoluta. A isso dá-se o nome de cientificismo que, conforme explica Abbagnano, constituiu a vanguarda romântica da ciência no século XIX.
Creio ter sido ligado ao significado de doutrina de vida destinada a vencer a religião, que o materialismo esteve em pauta, em nosso meio, por boa parte do século XX. Lembrei-me disso por acaso ao assistir, pela televisão, o filme em que o ator Carlos Vereza interpreta um dos grandes expoentes do espiritismo no Brasil, o médico e médium Bezerra de Menezes. No filme há uma cena que ilustra bem o embate entre um credo, no caso o espiritismo, e o materialismo: Bezerra de Menezes está presidindo uma reunião espírita quando é desafiado por um materialista a provar que existe algo além da morte, que os espíritos reencarnam e assim por diante. O que os materialistas querem é um debate que não é aceito por Menezes. O médium justifica-se dizendo que só aceitará o debate no dia em que os materialistas provarem a utilidade de sua doutrina para ajudar aos seus semelhantes que sofrem e assim por diante.
Quem assistiu a pregações em igrejas até meados do século XX terá ouvido da boca de padres e bispos grandes críticas ao materialismo identificado como um modo de ser ligado aos interesses, quando não carnal. Aliás, esse significado talvez seja ainda o mais corrente, sendo usado quando se quer caracterizar pessoa sem preocupações com o espírito e voltada para as coisas do mundo, para a posse etc. Note-se que esse modo de ver funda-se em raízes do passado, às tendências materialistas de classes ou grupos mais identificadas com o conforto e o prazer, a um comportamento que Abbagnano nos adverte ser mais conveniente chamar de hedonismo.
Conheci no passado várias pessoas rotuladas como materialistas, pelo menos era assim que os que com elas conviviam as classificavam. Creio que hoje os tais materialistas que conheci passariam por simples consumistas que não seguem religiões. Tomando o termo materialismo no sentido em que é mais utilizado popularmente poderíamos dizer que o mundo atual está cheio de materialistas, consumistas inveterados, pessoas voltadas para o lucro etc. Mas quanto ao sentido filosófico e mais exato do termo, não sei se ainda andam por aí muitos materialistas.
O “Dicionário de Filosofia” de Nicola Abbagnano tem edição em português, ano 2000, pela Martins Fontes. O filme Bezerra de Menezes pode ser encontrado em locadoras.
Coisas para não pensar
O controle absoluto do pensamento é improvável ainda que certas doutrinas relacionadas à mente acenem com essa possibilidade. Talvez monges tibetanos, budistas e seguidores de outros credos alcancem avanços nesse campo. A imagem do jovem Siddhartha, mais tarde Buda, meditando é um convite ao isolamento das coisas terrenas, ao combate aos desejos que sempre trazem dor e a uma imersão em estados superiores do espírito. Cultivar a mente, praticar o bem e evitar o mal são os ensinamentos de Buda, úteis quando o que se pretende é atingir a paz interior que conduz à felicidade.
Mas como seguir essas diretrizes no convulso mundo de nosso dia-a-dia? Que fazer com o estresse inerente a toda sorte de atividades que começam pelas cada vez mais difíceis relações entre os seres humanos?
Sobre esse assunto conversei hoje de manhã com um homem bastante estranho, o Sábio que mora no terceiro andar. Primeiramente devo dizer que a figura do Sábio não é nada exemplar. Homem de pouco mais de quarenta anos de idade, o sábio veste-se de modo insólito: usa calça jeans e tênis acompanhados de uma bata indiana bastante colorida. No meio da testa traz sempre o bindi que, diz ele, simboliza a condição de pertencer a uma casta superior. Completam o quadro os longos cabelos desgrenhados e a barba muito comprida. Aspirante de oráculo é o que ele parece.
Na opinião do Sábio o mundo moderno é contraditório, daí abrigar o choque contínuo entre forças antagônicas. Explica ele que tremendas batalhas são travadas no terreno do invisível gerando-se energias avassaladoras que afetam a vida no planeta. Deriva do grande embate entre forças opostas o estresse do cotidiano. Trata-se de um fluir contínuo de energia que se propaga pelos corpos, imantando-os. Por essa razão, passam os corpos a atrair tudo o que está perto deles, inclusive outras formas de energia, negativas, provocando depressão e estresse.
Essas coisas o Sábio me disse, por vezes olhando para cima a apontando o dedo indicador para o Cosmos, fonte primária de todas as energias circulantes que afetam o comportamento humano.
Dado serem constantes e irreversíveis os fatos apresentados pelo Sábio compreendi que vivemos num planeta onde nada ou pouco podemos fazer no sentido de evitar o afluxo permanente das energias que atravessam os nossos corpos e impactam dramaticamente as nossas atitudes. Disse isso ao Sábio que sorriu e acusou-me de falta de conhecimento. Justamente - afirmou ele – é aí que entram os ensinamentos de Buda. É preciso deixar-se iluminar, buscar a luz – acrescentou.
A partir daí o Sábio estendeu-se sobre os mistérios do budismo. A conversa já ia longe quando dei um jeito de abreviar o encontro perguntando a ele sobre alguma forma prática de reduzir o estresse. Foi quando o Sábio me falou sobre as tais coisas em que não se deve pensar, coisas que nos aborrecem e que temos que evitar. Na prática trata-se de implantar um sinal de alerta no cérebro capaz de soar toda vez que uma sequência de pensamentos nos leve a um assunto que a todo custo deve ser barrado. Segundo o Sábio, com algum esforço pode-se bloquear uma rotina de pensamentos componentes de um contexto maior ao qual chegaremos caso não se evite a progressão deles. Os exemplos são vários e ligados a aborrecimentos cotidianos como contas a pagar, doenças, declaração do Imposto de Renda, atividades de políticos, desemprego, corrupção, violência etc. Nunca pensar nisso tudo reduz dramaticamente o estresse.
De nada me adiantou protestar que não pensar em nada disso representaria não fazer parte do mundo etc. Diante da minha incredulidade o Sábio disse:
- É por você ser como é que vive tão estressado. Evite e ignore compromissos. Procure a luz, ilumine-se. Só assim encontrará a paz e a felicidade.
Posto o que entrou no elevador e recolheu-se ao seu Nirvana, localizado no terceiro andar.