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Renúncias de presidentes
Os brasileiros foram atingidos por duas renúncias de presidentes da República o que, pensando bem, não é pouco num período de cinquenta anos. A primeira delas foi a de Jânio Quadros, em 1961, cujas causas ainda hoje seguem controversas. De todo modo o país foi surpreendido com a renúncia de um presidente que chegara ao governo levando a esperança de milhões de brasileiros por dias melhores. Tentativa de retorno com mais poderes, simples pileque e até mesmo a solidão do governo em Brasília estão entre as muitas explicações para o intempestivo abandono de Jânio do cargo de primeiro mandatário do país.
O segundo renunciante foi Fernando Collor de Mello que se apeou do poder após o impeachment ser votado pelo Congresso. Eleito, Collor trazia para o governo central juventude e ousadia que já nos primeiros dias manifestou-se por medidas econômicas radicais como o congelamento de 80% dos depósitos bancários. Cada brasileiro passava a ter em conta corrente NCz$ 50 mil fato que desgostou e causou enormes embaraços à população. Congelamento de preços e salários, criação do IOF, aumento de preços de serviços públicos e outras medidas que logo se mostraram confusas e ineficazes tornaram-se verdadeiro tormento. Por trás desse aparato crescia a corrupção, comandada por PC Farias, fato que quando veio à luz provocou a renúncia do então presidente. As acusações ao presidente foram feitas pelo próprio irmão dele, desencadeando enorme revolta popular.
O Brasil teve, portanto, nos últimos 50 anos, história bastante conturbada na qual se inclui o longo período de ditadura militar instaurado no país, em 1964, com a deposição do então presidente João Goulart.
São fatos sobejamente conhecidos, mas que devem sempre ser lembrados para que nem por sonho o país torne a experimentar período de tanta turbulência. É justamente por isso que os brasileiros acompanham com atenção o julgamento do mensalão do qual se espera o veredito final de culpa ou inocência dos acusados de corrupção. Eis aí um fato que pode ser incluído na categoria do “nunca antes neste país” porque, sinceramente, pessoas que já viram de tudo no passado, sempre sob o acobertamento da impunidade, jamais esperariam que um dia a mais alta corte do país se empenhasse num julgamento como o atual.
Há quem diga que o que se espera não é Justiça, mas punição. Políticos aliados aos acusados do mensalão tentam desfigurar o julgamento taxando-o de manobra para depor presidentes etc. Além disso, estranhamente continuam a bater na mesma tecla, qual seja a de negar a existência do mensalão sobre o qual já se acumulam provas incontestáveis.
As punições dos corruptos talvez não seja o que mais interessa nessa história toda. O mais importante é que o julgamento que ora acontece no STF funciona como divisor de águas, estabelecendo-se no país um novo código de conduta e modo de ser daqui por diante. Rasga-se o véu da impunidade e os homens públicos são alertados sobre a honestidade necessária no desempenho de suas funções.
Um novo Brasil deverá emergir após o término do julgamento do mensalão.
A Copa de 1962
Eu era adolescente em 1962, cursando o Ginásio que hoje é chamado de Ensino Fundamental II. O Brasil não era nem de longe esse país emergente que hoje conhecemos. No ano anterior, 1961, o presidente Jânio Quadros surpreendera o país renunciando ao poder. Eu me lembro de estar em São Paulo logo após a renúncia de Jânio. Pairava um silêncio mortal nas ruas e o aspecto das pessoas traia desilusão. Vi, na esquina da Alameda Nothman, ao lado do Colégio Coração de Jesus, populares aglomerados numa banca de jornal, lendo as notícias. Ninguém dizia nada, houve quem saísse dali com lágrimas na face. Jânio era esperança, mostrara-se uma fraude e, agora, após a Campanha da Legalidade promovida por Leonel Brizola, Jango estava no poder.
Em 62 no Brasil vigorava no país o regime parlamentarista e um dos primeiros-ministros a chefiar o governo foi o Brochado da Rocha, cujo nome dava o que falar. No plano mundial a Guerra Fria seguia seu itinerário com a constante disputa entre os EUA e a União Soviética. No início do ano houve o episódio da Baia dos Porcos, em Cuba, que quase deflagrou uma guerra mundial que tanto se temia pelo lançamento de mísseis de longa distância. Veio daí o bloqueio continental imposto a Cuba que até hoje perdura. Os EUA mandavam no mundo mais que hoje e impuseram a expulsão de Cuba na Conferência de Punta del Este. A América Latina fez o que era lhe possível na época: curvou-se às ordens do gigante do norte.
De 1962 ficou-me o som de Stella by Starlight cantada pela voz rouca de Ray Charles. Lembro-me de que meu pai não gostava de Ray Charles porque para ele era incompreensível justamente aquela voz rouquenha num cantor. Demais. por aqui a Bossa Nova estava em alta e 62 foi o ano em que os nossos rapazes se apresentaram no Carnagie Hall, em Nova York, grande marco para a internacionalização da música brasileira. Por aqui ouvíamos também grandes intérpretes em plena atividade como Cauby Peixoto, Moreira da Silva, Nelson Gonçalves e tantos outros.
Mas, o ano de 1962 ficou mesmo na memória pela conquista do bicampeonato mundial pela seleção brasileira. Tínhamos um time invejável que perdeu Pelé na segunda partida por contundir-se, mas Garrincha brilhou e o Brasil foi campeão.
Ontem, 17 de junho, comemorou-se o cinquentenário da vitória do Brasil sobre a Tchecoslováquia, partida final da Copa de 62. As emissoras e TV e sites da internet estão mostrando cenas da conquista brasileira nos gramados do Chile. O que é impossível transmitir é a emoção que nós, os que acompanhamos os jogos pelo rádio na época, experimentamos a cada gol do Brasil. Éramos um país confuso, imerso em disputas terríveis e endividado para o qual o futuro não passava de terrível incógnita. Habituados à condição de terceiro-mundistas e sem peso no concerto das nações nada havia que nos projetasse diante do mundo. Foi nesse contexto que as chuteiras fizeram a diferença daí a colossal festa de recepção aos jogadores da seleção quando voltaram do Chile.
Eram outros tempos, outro o modo de encarar os acontecimentos, mas nas memórias ficou gravado o registro daquele grito imenso, enorme, que nos fez sentir superiores dentro da inferioridade que nos era atribuída diante do mundo. Apagava-se de vez o descalabro da perda da Copa de 50 em pleno Maracanã e passávamos a acreditar mais em nós mesmos. O futebol, a Bossa Nova e a nossa invejável capacidade de recuperação davam-nos força para seguir adiante, embora nem desconfiássemos do que estava por vir naquele 31 de março de 1964 que viria a mudar a nossa história.
O centenário de Tancredo Neves
Não é possível dizer se nos dias atuais a morte de um homem como Tancredo Neves provocaria tanta comoção pública. O fato é que Tancredo faleceu num momento em que ele era indispensável ao país e, por que não, aos nossos sonhos.
Com frequencia aparecem críticas relacionadas aos modos de narrar a História. Escrever olhando para o passado, tentando interpretá-lo, oferece a vantagem de maior isenção, subtraindo-se os perigos proporcionados pelo calor da hora. Por outro lado, certas situações jamais serão transferidas à posteridade sem que se considerem as emoções de momento as quais talvez expressem, melhor que tudo, a força e natureza dos acontecimentos.
A morte de Tancredo Neves inscreve-se num hiato de grande emotividade pública, daí não serem demasiadas as tentativas de captar nas narrativas sobre o episódio o clima das ruas naquele distante 1985, certamente fatídico para o destino do país. Aliás, nunca é demais lembrar que a História do Brasil é pontuada por episódios inesperados que vieram a influir dramaticamente na trajetória do país. O suicídio de Getúlio Vargas, a renúncia de Jânio Quadros e o desaparecimento de Tancredo Neves às vésperas de ser empossado presidente da República são exemplos de fatos que notoriamente mudaram os rumos do país.
Não vi o Brasil perder a Copa do Mundo de 50 e era muito pequeno quando Getúlio Vargas se matou. Anos a fio ouvi de pessoas de minha família referências a esses dois infaustos acontecimentos que marcaram as pessoas da época em que aconteceram. Minha mãe, assim como milhares de brasileiros, guardou durante toda a sua vida as emoções provocadas pelas mortes do cantor Francisco Alves (o Chico Viola, em 1952) e da cantora e atriz Carmem Miranda (em 1955). O desaparecimento desses dois ídolos provocou comoção nacional dado que eram adorados pelo público ao tempo da Era do Rádio.
Como todo mundo, acompanhei de longe os últimos dias de Tancredo Neves, surpreendido que foi ele por doença que abruptamente colocou fim à sua carreira, privando o Brasil de um dos mais hábeis políticos de sua história. Não será preciso descrever a terrível rotina dos dias que antecederam a morte de Tancredo, os comunicados médicos que devagar passaram de mensagens de esperança para lacônicos informes sobre o estado de saúde irreversível.
Embora esperada, a notícia da morte de Tancredo Neves foi recebida com grande tristeza e decepção relacionada ao que mais parecia a comprovação da má sorte do povo brasileiro. Mal saíramos da ditadura militar, navegávamos com rumo incerto e sem qualquer garantia de que o país retornaria ao regime democrático. Tancredo fora o fiador de uma situação gerada para sepultar os chamados anos de chumbo de tão triste memória. E, de repente, ainda no início do caminho, o homem morria deixando atrás de si um vazio que dificilmente seria preenchido. Frustração geral, tristeza, muita tristeza.
Tancredo faleceu em São Paulo. Seu corpo, levado da cidade a bordo de um avião, forneceu às memórias uma das mais tristes e terríveis cenas a serem recordadas: a imagem do avião no ar levando o corpo de Tancredo terá sido uma das mais emotivas e devastadoras de nossa história. A esperança ia-se para sempre de braços com as asas de uma aeronave que parecia nos dizer que tudo é finito, nada se pode fazer contra a imposição de forças incontroláveis que teimam em afetar os nossos destinos.
Este texto contém considerações sobre fatos sobejamente conhecidos. Então, para que escrevê-lo? Para lembrar que o Brasil que temos hoje não foi forjado pelo acaso e sem sofrimento. Para lembrar aos homens públicos a enormidade de suas responsabilidades. Para gritar que o Brasil é obra de muitos braços e não de governantes episódicos. Para que se tenha respeito por um país de que tanto nos orgulhamos.
Que o centenário do nascimento de Tancredo Neves que se está comemorando sirva como momento de reflexão para as classes políticas do Brasil, em todos os níveis. Não se trata de pieguice: na verdade é uma questão de consciência.