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Gaddafi morto
Enfim uma longa fase do conflito que acontece na Líbia termina: Muammar Gaddafi está morto, capturado que foi pelos rebeldes. Seria temerário falar em fim do conflito porque, após décadas de ditadura, o país inevitavelmente passará por uma série de ajustes durante os quais não se poderá descartar derramamento de sangue.
A natureza da longa ditadura de Gaddafi na Líbia é conhecida, sendo desnecessário rememorá-la. O que mais chama a atenção no momento é esse capitulo final da longa história de dominação de um líder que se tornou conhecido pela sua imprevisibilidade. De fato, nas últimas décadas Gaddafi povoou o imaginário do ocidente com atitudes de extrema arrogância e periculosidade. Durante seu governo esmagou o povo líbio e fez questão de mostrar-se ao mundo como alguém de poder imenso e que tudo pode, desafiando instituições internacionais e colocando-se à margem das regras de convívio entre as nações. Foi assim que se cercou com a aura de rebelde incontrolável, tantas vezes sendo considerado como uma espécie de louco extravagante, mas sempre impossível de ser ignorado.
Hoje Gaddafi foi finalmente alcançado pelos rebeldes e morto. Um vídeo que corre na internet mostra o ditador nos momentos finais de sua vida. Ainda vivo é sustentado por rebeldes; depois de morto a todo instante as pessoas que o cercam movimentam o corpo, deixando-o ora de bruços, ora de barriga para cima. Um close no rosto mostra um homem envelhecido. Nada nesse rosto sugere o temível ditador, levando-nos a pensar que a morte iguala os homens na inércia, desmitificando-os.
Não importa de quem se trate, é assim que acontece. No fim das contas um homem que fez e desfez, aquele que por décadas frequentou os noticiários em todo o mundo, esse homem jaz sem vida no chão e tem o seu corpo manipulado por gente desconhecida de seu próprio povo. Nada da grandeza anterior, nada que evoque o poder perdido. O mito se desfaz na velocidade em o homem deixa de ser e se transforma na massa inerte que em breve há de se decompor.
Fica, entretanto, a dor, a longa história de opressão, a esperança de que mais que depressa tudo se torne passado e uma era de paz se inaugure para o povo líbio.
Horror sem fim
A cena se passa num hospital. Soldados encontram os corredores vazios, sem médicos e enfermeiros. Quando entram nos quartos deparam-se com cadáveres sobre os leitos, muitos deles em avançado estado de putrefação. Os cadáveres são de soldados líbios e mercenários que combatiam nas tropas de Gaddafi. Feridos, estavam internados no hospital quando os revoltosos entraram em choque com as tropas leais ao governo, em Trípoli. Em meio aos combates o pessoal de atendimento do hospital debandou, deixando os feridos nos leitos. Abandonados, a morte sobreveio nos dias seguintes, resultando nas terríveis cenas encontradas pelos revoltosos.
Não é um filme de horror: trata-se de realidade inimaginável em que feridos impossibilitados de se mover observam a morte de outros e aguardam, por um período longo e terrível, as próprias mortes. Talvez nem mesmo Stephen King conseguisse engendrar quadro mais dramático e desolador.
Mas, a guerra continua. Os revoltosos avançam e invadem os domínios particulares de Gaddafi. Aqui um avião de alto luxo que servia ao uso do ditador; acolá os aposentos luxuosos onde ele vivia. Uma foto mostra rebeldes sentados em poltronas ou banhando-se na piscina da residência do ditador. Nas mãos de um homem, mal vestido e em pé, a inseparável metralhadora. No chão, espalhados, restos e escombros de uma era que finalmente se encerra.
O que será da Líbia a partir de agora? Especialistas veem com bons olhos a deposição do ditador e um novo governo que possa ser democrático. O risco de luta pelo poder entre os insurgentes existe, sendo possível a situação descambar para a guerra civil. Há sofrimento à frente a esperar pelo povo líbio. Enquanto isso o mundo assiste a uma distância prudente a mais esse espetáculo pontilhado por sonhos democráticos e muita barbárie.
A guerra é um vale-tudo no qual a engenhosidade de ações inumanas jamais se esgota. Há sempre algo de novo e absurdo a ser experimentando num território onde a bestialidade humana torna-se desenfreada. A Líbia passa neste momento pelo transe da indefinição que pode gerar mais massacres, afinal guerra é guerra e na vigência dela a vida pouco ou nada vale.
Execuções sumárias
Não sei como se pode correr os olhos, com alguma indiferença, nessas fotos de corpos de vítimas de execução sumária. Um gole de chá quente entre uma e outra virada de página de jornal fornece a dimensão exata desse “não é comigo”, da observação superficial de algo real tomado como ficção.
Estão por toda parte as fotos de corpos de pessoas executadas em Trípoli. O regime da Gaddafi vai sendo desmantelado pelos revoltosos com o apoio de alguns países que se apressam a aderir ao discurso de aprovação da revolta. De repente os que toleraram Gaddafi por tanto tempo, os que se acomodaram aos investimentos do ditador, apontam do dedo contra ele. Reação tardia e interesseira porque o sofrimento dos líbios não começou com o início da revolta. A diplomacia brasileira continua reticente em reconhecer os rebeldes como representantes legais do país, mas posiciona-se contra o autocrata Gaddafi e pede mudanças. Como em outras situações ocorridas no período em que Celso Amorim era chanceler, continuam a existir motivos para que o Barão do Rio Branco não consiga descansar em paz.
O telefone toca, um amigo avisa que passará agora em casa para irmos ao churrasco do fim-de-semana. Logo depois estamos todos juntos, os de sempre, rindo e comendo carne até que Julia nos chama para ver algumas fotos do grupo, outras de conhecidos nossos, tudo como sempre, numa delas estamos abraçados, noutra o Enrico cortando carne, até que na tela aparece a foto de corpos com as mãos amarradas e cabeças dentro de um saco, cadáveres executados friamente em Trípoli, depois mais uma foto da filha de um amigo, outra de corpos estendidos e um ruído de tiros, de guerra que não para em meus ouvidos, tudo isso se confundindo na memória para estragar o dia enquanto o gosto do vinho italiano que o Alfredo trouxe vai provocando um paladar de sangue, fazendo-me contrair os lábios enquanto os amigos comentam e riem das fotos, uma após outra, dizendo que ficaram muito boas.