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Ameaça comunista?
Há quem fale com nostalgia sobre o regime militar iniciado em 1962. De fato o país atravessava fase convulsa. A inesperada renúncia de Jânio elevado ao poder e galvanizando as esperanças de milhões de brasileiros naufragara. O governo Jango mantinha-se, a duras penas, num país em frangalhos. No comício do dia 13, na Central do Brasil, Jango lançava bases para mudanças necessárias, mas entendidas pela oposição como de inspiração comunista. Daí para a revolta de 31 de março de 64 não foi mais que um passo. Militares tomaram o poder sem encontrar resistência, apoiados pelo governo de Lyndon Johnson. A ideia, a princípio, era, não muito tempo depois, convocar eleições e devolver o país ao sistema democrático. Não foi o que se viu. Passaram-se 20 anos de ditadura militar com abusos que até hoje nos espantam. Se do ponto de vista de desenvolvimento devem-se aos militares realizações o mesmo não se pode dizer em relação às liberdades individuais, tolhidas ao máximo após o AI-5.
Todo mundo sabe disso, mas não custa repetir. Também não custa lembra-se de que nas décadas de 60 e 70 o mundo vivia sob o impacto da Guerra Fria. A bipolarização fazia-nos reféns do alinhamento com os EUA. A dissidência de Cuba quanto ao alinhamento resultara em consequências que chegaram ao bloqueio continental determinado pelos EUA. Como se vê o comunismo era, na época, considerado como ameaça palpável daí ser temido pelas classes dominantes do país.
Agora um salto de pouco mais de 50 anos em direção à realidade atual. O fato é que, após a vitória de Dilma no segundo turno das eleições, tem recrudescido uma onda de protestos nos quais se pede o impeachment da presidente e revela-se que uma nova ameaça comunista está a rondar o país. Se compararmos o momento atual àquele em que Jango foi deposto veremos ser exagerada a hipótese de um avanço comunista. O bolivarianismo do Brasil é uma peça distante, tão distante que seria irrealizável. Entretanto, há quem se movimente para protestar o que não deixa de ser bom. Noticia-se que o presidente Obama recebeu petição assinada por mais de 140 mil pessoas no qual se apontam os perigos que rondam o Brasil. Afirma-se que as eleições não foram limpas dado que não se pode confiar em urnas eletrônicas; que os pobres votaram no governo por receio de virem a perder benefícios como o Bolsa Família; e há menções de que a solução seria a volta do regime militar. O perigo é de que o Brasil se torne uma nova Venezuela.
Assim, um povo descrente e temeroso da ameaça comunista começa a se mobilizar dado o governo estar a 11 anos nas mãos de um partido que se perdeu na corrupção, essa a conclusão final dos que rechaçam o governo da presidente reeleita.
O fato é que o mundo mudou. Vez ou outra algum intelectual avisa sobre a possibilidade de ressurgimento da bipolarização no mundo. Mas, a ameaça comunista surge como algo impossível de acontecer no Brasil de hoje. Verdade que temos de manter os olhos sempre bem abertos. Mas, não custa separar o trigo do joio como, por exemplo, podar certos exageros tal qual pretender o retorno da ditadura militar ao país. Como dizia Churchill “A democracia é a pior forma de governo, salvo todas as demais formas que têm sido experimentadas de tempos em tempos”.
As revoluções
No “Houaiss“ o vocábulo revolução, em sentido político, é definido como “movimento de revolta contra um poder estabelecido, feito por um número significativo de pessoas, em que geralmente se adotam métodos mais ou menos violentos; insurreição, rebelião, sublevação”.
No Brasil a turma dos descontentes costumava descaracterizar a “Revolução de 64”, também conhecida como “A Redentora”, taxando-a de “quartelada”. Movimento incruento, realizado por militares, não seria revolucionário. O poder foi tomado, o presidente João Goulart deixou o país e o resto todo mundo sabe. Quanto a número significativo de pessoas envolvidas e métodos violentos, não há notícia de que tenham sido expressivos naquele 31 de março de 64. A violência viria algum tempo depois, de ambos os lados, e o assunto ainda hoje dá pano para manga. Países vizinhos que viveram situações semelhantes encararam mais de frente o problema envolvendo torturas, desaparecimentos e terrorismo. Por aqui se pretendeu, com a anistia, sepultar memórias e condicionar uma paz de espírito impossível. O resultado é que o assunto continua vivo. Hoje mesmo lê-se nos jornais a notícia de que um procurador militar do Rio quer examinar papel de agentes das Forças Armadas no desaparecimento de quatro militantes ao tempo da ditadura. Para o procurador esses casos não estão prescritos e não aplica, em relação a eles, a Lei de Anistia de 1979.
Cada um terá as suas lembranças sobre o período da ditadura no Brasil. Para mim vários momentos ficaram gravados e talvez mais tarde eu me proponha a recordá-los. Por ora, basta um deles relacionado ao significado do termo revolução. Naquele 31 de março eu era um aluno de primeiro grau, estudando em colégio de cidade do interior de São Paulo. Acontecido o Golpe de Estado que colocou fim ao governo democrático de Jango seguiu-se prontidão e movimentação de tropas em todo o Brasil. Na cidade em que eu estava existia – e ainda hoje – um quartel. Dele saíram soldados em direção ao Rio de Janeiro, viagem que não se completou devido ao mau estado dos veículos utilizados. De modo, que quando se entendeu irrevogável o Golpe Militar, voltaram os briosos soldados, até então estacionados na Via Dutra, ao quartel de origem.
Ora, naquela época os efeitos da Guerra Fria faziam-se sentir pesadamente no continente dada a liderança inconteste dos Estados Unidos. O receio do avanço do comunismo, a ânsia por desenvolvimento, progresso, paz política e redução da carestia contribuíram para que, num primeiro momento, o Golpe Militar fosse muito bem visto pela população. De modo que, quando os soldados voltaram, entraram na cidade triunfalmente, sendo recebidos com muito carinho e aclamados pelo povo. Voltavam como heróis e com tal carapaça desfilaram pelas ruas.
A isso assisti e testemunhei. Creio que o fato dá ideia das dificuldades de momento para a união de forças no sentido de executar uma verdadeira revolução.
Tudo isso me vem à memória no momento em que ditaduras do norte da África enfrentam movimentos de oposição. Enquanto no Egito o ditador Mubarak viu-se obrigado a renunciar, na Líbia o ditador Muammar Gaddafi declara que só deixará o governo se morto. A desordem toma conta de cidades líbias e a revolta é duramente reprimida pelo governo. Civis são bombardeados e estrangeiros encontram dificuldades para deixar o país.
Revoluções. Longas ditaduras do mundo árabe podem ruir pela força das revoluções.
Eder Jofre
Jornais e sites estamparam ontem fotos de Eder Jofre ao tempo em que atuava como peso galo. Comemoravam-se os 50 anos da conquista do título mundial por Eder em luta realizada em Los Angeles. O ano era 1960 e o adversário, derrotado por Eder, chamava-se Eloy Sanches.
Não há como recompor por inteiro o perfil de uma época e o peso da vitória de Eder sobre a então combalida estima nacional. O Brasil perdera a Copa de 50, na trágica final contra o Uruguai, em pleno Maracanã; Getúlio Vargas suicidara-se em 1954; Juscelino assumira o governo, em 1956, e dava novo impulso ao país com o desenvolvimento da indústria automobilística e a construção de Brasília; a bossa nova firmava-se como novo gênero musical com o lançamento, em agosto de 1958, do compacto Chega de Saudade, cantado por João Gilberto; Maria Esther Bueno vencia a final de Wimbledon em 1959, tornando-se a tenista número 1 do mundo; e Pelé nascia para o mundo durante a fantástica conquista, pelo Brasil, da Copa do Mundo de 1958.
De repente um país mais que secundário e carente, subdesenvolvido, atrasado e assolado por enorme dívida externa projetava-se no cenário internacional. Buscava-se, a todo custo, suplantar um não confessado sentimento de inferioridade em relação a outros países com vitórias e demonstrações de capacidade do povo brasileiro. Foi nesse contexto que se inseriu a conquista do título mundial por Eder Jofre. Rever hoje as fotografias da luta de 60 e as da grande recepção popular ao boxeador por ocasião de seu retorno ao país é mais que nostálgico: as fotos em preto-e-branco documentam um momento de felicidade coletiva, de um grande grito que se prolongava após a conquista da Copa da Suécia.
Aquele Brasil não se parecia com esse que hoje conhecemos. Talvez seja demasiada a comparação, mas o Brasil de 60 seria uma aldeia enquanto que este se assemelha a uma grande cidade. Naquele mundo Eder Jofre reinou e deu mostras de sua força e categoria. Tornou-se uma paixão popular e, mais que isso, orgulho nacional. Tínhamos um campeão mundial, descendente de famílias de boxeadores, um brasileiro que derrotava estrangeiros. Esse sentimento tornou-se muito evidente quando da luta de Eder contra o irlandês Johnny Caldwell, realizada no ginásio do Ibirapuera. De fato, o combate rapidamente tornou-se uma guerra contra a Inglaterra e regiões próximas. Os jornais atribuíam a Caldwell reações de desprezo ao lutador brasileiro e isso feria o sentimento popular de nacionalidade. Nessa luta, realizada em fevereiro de 1962, Eder derrotou Caldwell e unificou o título mundial dos pesos galos. Na manhã seguinte, os jornais estampavam fotos de Caldwell ajoelhado na frente de Eder numa clara alusão à supremacia do brasileiro.
Eder perdeu o título em 1965 numa luta realizada no Japão contra Fighting Harada. A notícia da derrota espelhou-se no final de uma manhã, provocando grande tristeza. Algum tempo depois Eder abandonaria o boxe, mas voltaria a lutar tornando-se campeão mundial na categoria peso pena.
A comemoração do cinquentenário da conquista do título mundial por Eder Jofre devolve-nos imagens de um país em ebulição, avançando contra sólidas amarras, encarando o seu destino. Mas aí Juscelino deixou o poder, Jânio foi eleito e renunciou, Jango assumiu e não completou o governo porque deposto pelos militares que fizeram a chamada revolução de 1964. Iniciava-se um longo tempo de ditadura e silêncio, mas isso já é outra história.
De prisões e labirintos
Você leu os jornais dos últimos três dias? Caso tenha lido ficou sabendo sobre aquele marinheiro que participou da luta armada contra o regime militar, em 1964. Ele esteve metido nuns assaltos a banco, segundo se diz tudo por ideologia e nada de banditismo. Foi preso, torturado, conseguiu sair da cadeia, arranjou documentos falsos e se mandou para a Inglaterra onde vive até hoje.
Até aí uma história como tantas outras envolvendo extremistas, gente de sangue quente. Pois o marinheiro manteve o nome falso até há cerca de um ano quando resolveu assumir a sua verdadeira identidade: saudades do Brasil. Mas o caso é que nesses quarenta e poucos anos ele esteve escondido, trabalhando é verdade, mas certo de que existiam pessoas em seu encalço daí poder ser preso a qualquer momento.
Agora o marinheiro está velho e quer voltar ao Brasil. O problema é que ele não acredita que as coisas mudaram um pouco por aqui, tem até gente que foi presa pela ditadura recebendo uma boa grana de indenização. Nisso ele não acredita mesmo, de jeito nenhum. E tem certeza de que chegando aqui será imediatamente preso no aeroporto.
As pessoas que conhecem o marinheiro afirmam tratar-se de um curioso caso de homem que parou no tempo e dentro de certa circunstância. Nada aconteceu de verdade a esse homem desde que saiu do Brasil: ele ficou empedrado na irracionalidade do tempo estático e das condições imutáveis. Comparam-no ao tal sargento japonês que ficou escondido numa floresta depois da Segunda Guerra esperando o conflito acabar. Quando foi encontrado haviam se passado 28 anos desde o fim da guerra.
O caso do marinheiro me leva a pensar sobre a natureza das prisões. Existem celas sem paredes, às vezes limitadas apenas pelas fronteiras de países. O marinheiro sobre quem falamos esteve preso na Inglaterra nos últimos quarenta anos. Pagou com juros e correção a sua audácia. Nenhum presídio brasileiro será suficiente para abrigar a enormidade do infortúnio de um homem que na verdade morreu em 1964, mas continua andando por aí, recluso ao seu labirinto mental.
Labirintos estão entre os temas prediletos do escritor Jorge Luis Borges. No livro “O Aleph” ele nos fala, em “Os dois reis e os dois labirintos”, sobre formas diferentes de perder-se em labirintos, muitas vezes sem saída. Num desses, sem portas e paredes, o marinheiro que fugiu do Brasil perdeu-se para sempre.