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O outro que incomoda tanto
Não aconteceu nada na manhã de domingo. Só um amigo que me ligou para contar que está pensando em deixar o emprego. Desaconselhei. Ele já está nos 50 e “este país” não gosta muito de gente nessa faixa de idade.
Acontece que o meu amigo tem um chefe. Subiram juntos na empresa, o tal chefe sempre um passo à frente dele. Na competição entre os dois sempre houve um fator qualquer de desequilíbrio pendendo para o outro. Detalhes, pequenos detalhes, que foram dando ao outro lugar de destaque.
Creio que há poucos anos – sinceramente não me lembro – correu na empresa em que o meu amigo trabalha a notícia de que aconteceriam cortes, inclusive entre os mais graduados. Na ocasião o meu amigo teve certeza de que seria demitido. Ele não dizia, mas o que mais doía a ele era o fato de que outro continuaria no emprego e ele seria cortado. Coisa bastante injusta, no seu entender. No fim os dois ficaram o que era, aliás, previsível.
É preciso dizer que também conheço o outro. O outro - chefe do meu amigo - é um sujeito sossegado, mas competitivo. Parece meio desligado, mas por baixo do seu jeito de desatento esconde-se um espírito prático e muito observador. É desses que não dão mostras do que realmente são, nem do que são capazes de realizar. Imagino-o proprietário de grande frieza nos momentos de decisão, caráter esse oposto ao do meu amigo, tipo emocional e efusivo.
Ah, ia me esquecendo: os dois foram colegas na faculdade, entraram juntos na empresa onde trabalham e são compadres. As mulheres dos dois frequentam-se e vão juntas às compras. Não passa muito tempo sem que um vá à casa do outro para uns goles, preenchendo a parte de cortesia social.
Então, a única coisa errada nessa história toda é o fato do meu amigo estar sempre um passo atrás do outro. O que me faz pensar sobre a maldade do mundo em que vivemos. O meu amigo poderia ter-se aproximado de milhares de outras pessoas ao longo de sua vida. Quis a sorte, o destino ou o que quer que seja que passasse a vida junto de alguém que fizesse sombra a ele. É a vida.
Depois que desliguei fiquei pensando se não deveria ter encorajado o meu amigo a deixar o emprego. A verdade é que ele já não suporta mais a existência do outro. Não posso dizer que o outro faça mal ao meu amigo de modo consciente, mas que faz mal a ele faz.
E o meu amigo? Caso saia do emprego será que se livrará definitivamente da sina de ser sempre o segundo? Não sei. Há pessoas que nascem para viver tramas do tipo Frajola e Piupiu, no qual um persegue e outro é perseguido , mas não podem existir separados.
Para arrematar é bom lembrar o bom e velho Sartre que sentenciou: o inferno são os outros.
Mortes no trabalho
Leio na biografia que Sartre escreveu sobre Charles Baudelaire que para o poeta francês a possibilidade do suicídio era um meio de se manter vivo. Em outras palavras, há quem trabalhe mentalmente com a hipótese de dar fim à vida e encerrar tudo num momento de sua escolha. Essa possibilidade confere força a essas pessoas para suportar situações desconfortáveis dado que contam com a variante de largar tudo e morrer.
Creio que na maioria desses casos o suicídio não se consume. Entretanto, para os verdadeiros suicidas, a morte pode vir a acontecer desde que eles sejam submetidos a situações intoleráveis. Isso é o que nos sugere a impressionante marca de 23 suicídios de funcionários da empresa France Telecom, em 2008. A esse número somam-se outros suicídios como o de uma empregada que há poucos dias atirou-se através de uma das janelas da empresa. Outro suicídio quase aconteceu durante uma reunião da empresa numa cidade próxima a Paris. Um dos técnicos estava sob pressão por saber que o seu posto seria suprimido. Durante a reunião o homem de 50 anos de idade foi avisado de que seu cargo não mais existia e reagiu dizendo que não aceitava a nova condição. Em seguida sacou um objeto perfurante e o cravou no próprio estômago, ferindo-se gravemente.
Obviamente a France Telecom nega que os suicídios tenham algo a ver com as mudanças de gestão da empresa atribuindo-os a estados depressivos, divórcios, dívidas e outros motivos de natureza pessoal. Entretanto, segundo os sindicatos, é o atual modo de gerir a empresa a causa das tragédias que infelizmente continuam a acontecer. Como exemplo cita-se o recente caso de um homem de 53 anos que dirigia o comitê de segurança e higiene da empresa. Esse funcionário se matou após várias discussões com os seus superiores.
Para os entendidos parece não haver dúvidas de que a mudança do tipo de gestão da France Telecom é a causa do elevado número de suicídios. Obviamente a insegurança gerada por mudanças administrativas age seletivamente sobre temperamentos mais suscetíveis à idéia de colocar fim à própria vida. O desespero e a impossibilidade de alterar o rumo das coisas afetam progressivamente pessoas que sucumbem às pressões e acabam se matando.
O que nos chama a atenção em casos como esse é a frieza com que são tratados, sendo encarados profissionalmente como acidentes de percurso. Linhas de ação empresariais devem ser mudadas em atenção às exigências de mercado e necessidades de clientes e cabe aos trabalhadores adaptarem-se às condições imperantes. Existe sempre um motivo maior e geralmente irracional por detrás de alterações que causam profundas crises nos projetos pessoais levando os implicados a atitudes extremas.
Os suicídios acontecidos na grande empresa francesa são um alerta nesses tempos globalizados em que muitas empresas adotam modelos de gestão importados e nem sempre adequados ao modo de ser dos trabalhadores brasileiros.
Mudanças de gestão de empresas ocorrem por vários motivos. Entre eles são comuns situações de venda de empresas a novos proprietários que professam linhas diferentes de gestão. Quando isso acontece, a força de trabalho empregada experimenta variações funcionais e salariais, quando não situações de desemprego. É a partir daí que projetos de vida são afetados não sendo incomum que pessoas, movidas desespero, tomem atitudes limítrofes com risco da própria vida.
As novas mídias
Mande notícias do mundo de lá – diz a música de autoria Milton Nascimento e Fernando Brant. Notícias chegam, impactam, envelhecem e passam. Em curto período de tempo fomos bombardeados pela queda do Airbus no vôo 447, a crise do Irã, a crescente corrupção do Congresso brasileiro, a morte de Michael Jackson e milhares, milhares de outras notícias menores que dançam nas páginas de jornal e revistas além de ocuparem enorme espaço nos sites da Internet.
Dos jornais que chegavam da Europa através de navios às velozes notícias trazidas pelo cabo submarino no século XIX, pulamos para a instantaneidade dos meios de comunicação atualmente verificada. Mais interessante é o fato de as mídias disponíveis abalarem o monopólio de informações até agora de posse de grandes empresas de comunicação ou mesmo governos. O caso do Irã onde, apesar da restrição governamental, notícias e fotos sobre a crise são divulgadas por pessoas comuns, via Twitter ou outros meios, é só mais um na nova história que está sendo escrita sob o ponto de vista de observadores não credenciados.
De repente, acontecimentos nos são mostrados por informantes ocasionais que muitas vezes se limitam à transmissão pura e simples de fatos, sem crítica e até mesmo sem grande envolvimento. A febre da fotografia digital, a possibilidade de filmar qualquer pessoa ou acontecimento com um simples telefone celular e enviar o arquivo na hora sob a forma de torpedo instala uma nova fase nas relações humanas.
Não por acaso temos sido acossados por informações sobre fechamento de jornais e revistas e mesmo os livros estão sendo ameaçados por versões eletrônicas. As novas gerações estão à beira de substituir o prazer de abrir e folhear as páginas de um livro por um simples click de mouse ou o aperto de um botão.
Geram-se assim novos homens e uma humanidade que vai se distanciando de si mesma. Se isso é bom ou mau? Ao futuro pertence a resposta. Quanto a mim, só peço que não me seja tirado o prazer de ler livros impressos no bom e velho papel. Ontem mesmo reli partes daquela biografia de Charles Baudelaire escrita por Jean Paul Sartre. Esse livro pertenceu à minha família e hoje faz parte da minha pequena biblioteca. O curioso é que um seu antigo leitor deixou nas margens varias anotações sobre o texto. Esse leitor que tão bem conheci morreu há muito tempo, mas suas anotações me permitiram contato póstumo com ele. Não pude concordar com tudo que deixou escrito com sua letra miúda, mas no geral aceitei as suas ponderações.
Foi assim que nos reencontramos, eu e o falecido, alta madrugada, nas margens de um velho livro.