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O estigma da violência
Em hospital do Distrito Federal um travesti aidético, irritado com a demora para o atendimento de um colega, apropriou-se de uma seringa e retirou seu próprio sangue. Em seguida gritou no corredor, picou com a seringa a enfermeira-chefe e mordeu uma funcionária. As duas mulheres receberam o coquetel de medicamentos contra AIDS e não correm o risco de ser infectadas.
A notícia se perde entre outras notícias policiais, crimes violentos e terríveis como esse, ainda não esclarecido, da advogada que foi jogada com seu carro numa represa em Nazaré Paulista. De tal forma nos habituamos à ocorrência de atos violentos que eles passaram a fazer parte do cotidiano como algo que nos revolta, mas sem remédio.
Entretanto, é de se imaginar o horror de um homem armado com uma seringa na qual existe um vírus causador de doença ainda sem cura. As causas que levaram esse homem ao ato extremo, sua história pregressa e a descabida ação por ele praticada fogem ao espectro das ações esperadas para seres humanos. Talvez o desvario sirva para amenizar um pouco o ato do aidético que em determinado momento insurgiu-se contra pessoas inocentes, tentando inoculá-las com um mal que as faria sofrer durante o resto de suas vidas.
Nenhuma pena que ao travesti seja aplicada – aliás, necessária e impositiva - reduzirá a miséria da situação em que ele e outras pessoas se envolveram.
A ditadura dos regimes
Uma amiga me alerta sobre o crescente aprisionamento de pessoas à necessidade de regimes alimentares. Vive-se a neurose da boa forma a qualquer preço. Revistas especializadas trazem, a cada edição, novas fórmulas que, se seguidas, resultarão num corpo esbelto. São receitas acompanhadas de fotos de mulheres cuja beleza natural é incrementada com os recursos do Photoshop.
Nem é preciso muitas digressões sobre o assunto. O que se exige é que todo mundo tenha aparência saudável para isso, infelizmente, estabelecendo-se metas muitas vezes impossíveis. Como tudo o que se propõe por atacado é impossível o respeito às particularidades individuais. Nasce daí o desconforto localizado de pessoas que, façam o que façam, jamais chegarão ao patamar de beleza sonhado.
Não dá para generalizar, mas a imposição de padrões de beleza inalcançáveis torna-se uma fábrica de insatisfações pessoais. O problema é grande entre os jovens em fase de auto-aceitação. Conhecidos casos de bulimia entre jovens derivam de exigências pessoais absurdas. Quem já teve filhos enfiando o dedo na goela depois de comer sabe muito bem o que a ditadura da forma física ideal representa.
A busca do corpo ideal gera distorções alimentares nada desprezíveis. Recentemente, nos EUA, surgiu a moda do regime baseado em papinhas destinadas a crianças. Obviamente, os alimentos destinados aos infantes não contêm os nutrientes requeridos pelo organismo adulto, daí o perigo de desnutrição a outros agravos à saúde. Além disso, corre-se o risco do tal organismo tipo “sanfona”: perde-se muito peso de repente, recupera-se em seguida para depois voltar a perder peso. De nada adiantam as advertências médicas sobre o perigo de regimes dessa natureza.
Mas, que não se confunda tudo isso com o outro lado da moeda: a obesidade. Todo mundo sabe que a obesidade está em ascensão, inclusive no Brasil: dados publicados pelo IBGE informam que 38% da população acima de 20 anos de idade está acima do peso, sendo de 10% a taxa de obesos. Isso quer dizer que estamos nos aproximando dos EUA, país que espalhou a moda do fast-food em todo o mundo.
Falar sobre obesidade da população no Brasil soa estranho dado o país ainda estar às voltas com a fome e a desnutrição. Entretanto, o problema da obesidade é sério acarretando doenças cardíacas, hipertensão, diabetes e derrames. Para que se tenha idéia dados do Ministério da Saúde indicam que a percentagem de adultos com hipertensão subiu de 21,5% em 2006 para 24,4% em 2009.
A indústria que cerca a busca de um corpo ideal esmera-se em técnicas de propaganda com as quais busca a adesão de interessados no assunto. Revistas, academias e alimentos diet e light fazem parte de um contexto importante quando entendido como forma de aprimoramento pessoal, sem exageros. Como em tudo, o bom-senso deve falar mais alto e imperar nas decisões pessoais. Afinal, comer sem culpa ainda é um grande prazer e privar-se disso deve acontecer quando necessário e na medida certa.
Sob o Império das Aparências
De que é preciso cuidado com a saúde não se discute. Dietas ricas em gorduras são prejudicais: a associação entre altos níveis de colesterol e o endurecimento da parede dos vasos sanguíneos está mais que popularizada; exercícios físicos são fundamentais para a preservação da saúde em todas as idades; são enormes os malefícios proporcionados pelo consumo excessivo de bebidas alcoólicas; cigarros nem pensar; e assim por diante.
Assuntos relacionados a cuidados com a alimentação, preservação da saúde e manutenção da forma são constantemente veiculados pela mídia escrita e falada. Eles dão IBOPE, vendem revistas.
Até aí nenhuma novidade. O problema realmente começa quando, sob o manto da preservação da saúde, estabelece-se a ditadura da boa forma, do visual perfeito, da neurotizante balança que não mente, das gordurinhas localizadas, da feiúra opressiva, do botox, da cirurgia plástica tantas vezes desnecessária, da necessidade de melhorar para ser bem aceito nos meios que freqüentamos. Trata-se da imposição do belo.
Quando isso acontece o equilíbrio do organismo deixa de ser um problema médico e passa ao território do “fashion”, das centenas de regimes propostos - muitos deles absurdos -, do emagrecer a qualquer custo para parecer bem, do dedo na garganta após as refeições e todo o arsenal de atitudes desmedidas que, estas sim, comprometem a saúde e colocam em risco a própria vida.
É assim que, de repente, uma jovem modelo apresenta uma infecção urinária que evolui para septicemia e óbito. Do mesmo modo acontecem casos extremos de anorexia cujo tratamento não é nada fácil. Ou, para ficar no mais rotineiro a simples não aceitação do que somos, que se traduz no mal-estar que nenhuma roupa consegue evitar quando nos vemos no espelho.
A existência do belo realça o feio. O fato de vivermos na época do belo artificial, das imagens perfeitas porque retocadas, faz do belo falseado uma meta inatingível. Cria-se dessa forma uma nova escala entre a beleza e a feiúra na qual aparências normais tendem a deslocar-se na direção do feio. A partir daí não há como se evitar comportamentos e hábitos ditados pelo modismo, pelo império das aparências.
Como certa vez disse Pascal, “nous sommes embarqués”.
Estamos, mesmo, embarcados em curiosos processos de existência.