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Lá no alto do morro

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Amigo, não sei dizer por que a memória é assim, porque de repente algo soterrado lá no meio das sinapses – existem tantas - aflora, como um naufrago que tivesse adormecido sob as águas e despertasse com lembranças de coisas que simplesmente já não importam.

Então me lembro, sem mais, sem menos, sem aviso prévio, de mim menino, dando pernas naquele caminho de morro, estrada de terra, primeiro passando medroso ao lado do portão do cemitério, depois seguindo adiante como quem vai para as nuvens, talvez para o céu. Até alcançar a última curva, suando sob o sol, já vendo o casarão que um homem de nome estranho construiu no passado, a casa onde mora um casal e o filho, ela aparentada de minha família.

Pois ela é uma loira atraente, casada com certo Zé cuja face surge agora aqui bem à minha frente, ele tão direito, tão tenaz, zeloso na educação do filho que o chamava de pai, mas que não era filho dele, mas isso já é outra história. Ela, a loira, que me recebe à porta com aquele jeito brejeiro dela e eu entrando na casa e achando tudo muito bonito, a blusa dela amarela -revejo agora quão intenso e belo era o amarelo sobre a pele dela - e o filho que corre para brincar comigo, sempre sob os olhos vigilantes do pai.

Depois as cenas no quintal que na verdade é um cercado de arame, além do qual outro cercado enorme se abre com vacas leiteiras de um branco tão uniforme que todas parecem ser uma só. São as vacas do Zé das quais ele ordenha o leite que vende na cidadezinha bem abaixo do morro.

Estamos brincando, eu e o filho, então aparece aquele outro homem saído não sei de onde e, também, não sei como percebo entre ele e a loira, a mulher do Zé, a troca de um olhar, um só olhar que decide e ordena tudo. Depois é ela indo em direção ao mato enquanto o Zé cuida das vacas e o homem, pouco depois, seguindo na mesma direção enquanto o Zé ou percebe ou finge que não percebe que a mulher dele está com outro, lá no mato, escondida e nua, a certa distância de todos nós.

Não me lembro da loira voltando, só me resta o rosto triste do Zé que só agora, nesta noite, compreendo. Mas isso tudo já não importa e fico aqui me lembrando do Zé perto das vacas, da mulher dele no mato com aquele sujeito saído não sei de onde, de algo que na ocasião não entendi direito, mas que já não importa mesmo porque todas aquelas pessoas estão mortas e eu continuo aqui, sobrevivendo, lembrando-me delas.

Escrito por Ayrton Marcondes

27 maio, 2012 às 11:56 am

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O aniversário do Tubarão

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Se você não gosta de sedutores, não leia. Pois que fique bem claro: o Tubarão é um sedutor. Bonitão, bem de vida, conta-se que enlouquece as mulheres que se apaixonam por ele. O cara é o rei dos galanteios, discreto, se exagerarmos até mesmo um profissional do ramo. Mas é preciso dizer: o Tubarão não é vulgar e nesse aspecto reside a sua força. Como aquele seu sósia das águas: agressivo, mas contido na abordagem a ponto de que não se perceba a sua agressividade. Ele não se move: desliza. Distribui sorrisos, encanta, determina como tudo será e o coro da mulherada reza com ele numa sequência interminável de améns. Só depois desse ritual é que ele se revela em sua essência e aí, meu caro, babau.

O Tubarão é um sujeito mais que querido. O aniversário desse corintiano nato e de raça não foi uma festa: foi um momento de reorganização das bases porque amores distintos e de épocas diferentes vieram rever o grande rei. Era de se ver o sedutor no meio delas: insinuante, gestos estudados, guelras em ebulição como deve ser com um bom tubarão.

E não é que ninguém brigou ou discutiu? A vida ensina que nas altas águas do grande mar das emoções cada peixe tem o seu lugar e hora de ser acolhido pelo longo abraço do Tubarão. Enfim, tudo é possível quando o Tubarão decide dar uma festa. Não existe ciúme, namoradas e ex-namoradas entendem-se às mil maravilhas porque ele, o senhor, assim determinou.

Houve um momento, um só momento, em que o Tubarão titubeou: estava ele entre a loura e a morena com quem atravessaria o restante da madrugada. Nessa hora ele despiu-se do manto de rei dos mares e bares e perguntou a uma amiga – a que me contou essa história – se uma ou outra pretendida teria percebido a sua indecisão.

Não foi possível saber o que aconteceu no final. Há quem diga que saiu com as duas, afinal ele é o Tubarão. Mas o que rolou foi que até os homens estavam estarrecidos com o poder e a dominação do rapaz. Houve homem que o elegeu – em público – como o seu ídolo.

E a madrugada correu, as águas rolaram e os oceanos se calaram sobre os feitos do Tubarão naquela noite. Segundo se diz o Tubarão atingiu o invejável patamar de ser aceito segundo as suas condições. Seu aniversário foi um desses grandes acontecimentos sobre os quais a megalópole de São Paulo não toma conhecimento, assim como olvida a existência de tantas confrarias. Isso digo porque o Tubarão é na verdade o guru de uma opção de vida, talvez apóstolo de uma variante de entendimento que rola por aí,nas madrugadas, sem previsão de dia seguinte.

E assim segue a vida do Tubarão, como aquele Grenouille, a personagem do romance “O Perfume” de Patrick Süskind. Grenouille que aprisiona os odores humanos e leva o povo a se entregar aos mais explícitos gestos de amor, sem pudor algum.

Feliz aniversário, bendito e maldito Tubarão que provoca inveja a tanta gente.

PS: esta história me foi contada com uma graça impossível de repetir.

Escrito por Ayrton Marcondes

20 julho, 2009 às 11:03 am

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