Arquivo para ‘Semana de Arte Moderna’ tag
José Lins do Rego
Está no livro Gordos e Magros, de autoria do escritor José Lins do Rego Cavalcanti (1901-1957) e publicado em 1942 pela Casa do Estudante do Brasil, um ensaio no qual o modernismo paulista é criticado. Antes de falar sobre o ensaio vale dizer um pouco sobre esse grande escritor nem sempre lembrado, mas que pertence ao rol dos grandes da literatura brasileira.
O Zélins, como o chamavam, formou junto com Jorge Amado e Graciliano Ramos, uma tríade de importantes escritores regionalistas da literatura brasileira. Seu primeiro romance, Menino de Engenho é obra de valor e inesquecível. Depois dele vieram quatro livros que juntamente com Menino de Engenho foram enfeixados pelo próprio autor sob o nome de Ciclo da Cana de Açúcar. São eles: Doidinho, Banguê, O Moleque Ricardo e Usina. Entre outros trabalhos de Zélins estão os romances Fogo Morto e Pedra Bonita.
Paraibano, polemista, flamenguista roxo e pessoa despojada, Zélins escreveu romances, ensaios, livros de viagem, crônicas, conferências etc. Seus trabalhos mereceram estudo de críticos importantes que neles destacaram, entre outras características, a alta expressão literária, a inventividade, o memorialismo, o poder de descrição, a sensibilidade e a grande técnica que embasa uma linguagem simples.
Quando ao modernismo, não há que se negar a importância da Semana de Arte Moderna, realizada em São Paulo no ano de 1922. Tornou-se ela marco divisório nas letras nacionais e desse modo tem sido entendida e ensinada nas escolas. Existe uma literatura antes da Semana e outra depois dela. O que não se diz ou não se ensina é que o movimento modernista, iniciado com a Semana de Arte Moderna, não foi uma unanimidade no país. Nesse sentido vale ouvir o que nos diz José Lins do Rego no ensaio Espécie de História da Literatura que integra a coletânea Gordos e Magros. Na verdade o ensaio é uma resposta ao escritor Sergio Milliet(1898-1966) em razão de uma crítica que ele publicou sobre o então romance contemporâneo no Brasil. Segundo José Lins:
- o crítico Milliet considera que tudo o que há nas letras do Brasil procede de uma chamada Semana de Arte Moderna que meia dúzia de rapazes inteligentes e lidos em francês realizou em São Paulo com tiques e toda a mise-em-scêne com que Marinetti se exibira em palcos italianos, há 15 anos.
José Lins acrescenta que fora do eixo São Paulo-Rio, especificamente no Recife, a agitação modernista foi vista como “uma velharia, um desfrute, que o gênio de Oswald de Andrade inventara para divertir os seus ócios de milionário”.
Sobre o Macunaíma, de Mário de Andrade, diz José Lins:
- A língua de Mário de Andrade em Macunaíma nos parece tão arrevesada quanto a dos sonetos de Alberto de Oliveira … O livro de Mário de Andrade só foi bem entendido por estetas, por eruditos, e o seu herói é tão pouco humano e tão artificial quanto o boníssimo Peri de Alencar … Esse livro de Mário de Andrade é o mais cerebral que já se escreveu entre nós. Se não fosse o autor um grande poeta, seria o Macunaíma uma coisa morta, folha seca, mais um fichário de erudição ecológica do que um romance.
No mais José Lins defende a literatura nordestina chamando a atenção para o vigor e saúde dela que vêm das entranhas da terra e da alma do povo.
Não deixa de ser interessante a leitura dos ensaios que fazem parte de Gordos e Magros. Escritos por alguém não comprometido com o tom laudatório que em geral cerca autores e obras consagradas os ensaios muitas vezes oferecem pontos de vista discordantes da opinião geral dos críticos. De todo modo trata-se de uma leitura agradável que nos coloca em contato com uma mente poderosa e consciente de seu superior individualismo.
Não por acaso o escritor e poeta Ledo Ivo reafirmou, em palestra de 2001 proferida na Academia Brasileira de Letras, a posição de José Lins do Rego em relação ao modernismo:
José Lins do Rego é considerado um escritor modernista e um escritor moderno. Na minha opinião, este é um rótulo muito simples, e até falso, porque entendo que houve no Brasil dois modernismos: o modernismo de São Paulo e o modernismo do Recife.
O modernismo paulista, como todos sabem, ancorava-se numa aspiração de modernidade, de ruptura, de destruição do passado. Um modernismo contra o soneto, contra o verso medido e metrificado. Era o modernismo de uma sociedade que não tinha passado, num certo sentido. Mário de Andrade e Oswald de Andrade são exemplo típico dessa consciência. Era o modernismo da máquina, da pressa, da revolução arquitetônica.
No Nordeste ocorreu um outro modernismo, do qual José Lins do Rego é um dos grandes protagonistas. Este modernismo nordestino teve como seu grande ícone, seu grande guru, o escritor Gilberto Freyre, que voltando da Europa, em 1923, começou a falar, aos jovens escritores daquela região, de outros nomes e de outros sinais de modernidade. O modernismo nordestino se caracteriza pela tradição, pelo sentimento do passado e não por sua destruição, pela valorização da região, por uma descoberta e redescoberta do passado. Tanto é assim que ele deu dois livros fundamentais nesse sentido: Casa-grande & senzala de Gilberto Freyre e Menino de engenho de José Lins do Rego.
Um velho piano
Um piano do século XIX foi encontrado na Academia Paulista de Letras. Esteve lá, ignorado, durante todo esse tempo. Supõe-se que tenha sido usado em saraus durante a Semana de Arte Moderna de 1922; há suspeitas de quem tenha sido o doador de vez que o piano não faz parte do ativo de compras da Academia.
Um piano que passa despercebido durante quase cem anos lembra os versos de Manuel Bandeira no poema “Última canção do beco”: intacto, suspenso no ar . Um afinador que o examinou identificou a procedência alemã e surpreendeu-se com o bom estado das cordas e teclas. Ainda que emudecido, o piano conservou-se, esquecido, mas talvez pronto a devolver aos ouvidos humanos os sons para os quais foi preparado.
Imagino as gentes de 22 ao lado do piano, talvez Mário de Andrade a correr os dedos no teclado, tocando alguma modinha ou uma peça revolucionária. Mário ensinava música, mas terá sido bom intérprete?
Objetos antigos que permanecem são pedaços de passado que se intrometem no presente. Trazem consigo sombras de momentos vividos e terminados, evocando passos agora inaudíveis. O piano da Academia fez parte de histórias de vida encerradas e conserva delas segredos e emoções. Ao vê-lo identifica-se apenas um móvel que, quando afinado, será usado em concertos, assim se espera. Mas, com ele virá, ao presente, o som de outro tempo que embevecerá ouvintes com apelos do passado. Infelizmente o piano não trará de volta os homens e mulheres que estiveram ao lado dele na Semana de 22. Os poetas, músicos, romancistas e ensaístas de 22 já não podem ser encontrados e retornar ao presente: ficaram lá, no palco de um teatro, sendo vaiados pelas plateias, como eles desaparecidas, fazendo história, transformando-se em fotografias e textos, eternizando-se como portadores de uma nova que atravessou décadas, intacta e definitiva.
Um velho piano, um mar de histórias.