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Passamento
O gordo da esquina morreu. D. Diva, que vem de manhã e prepara o meu café, disse que foi de repente:
- Ontem mesmo ele estava bonzinho, na janela, com o olho dele, de sapo.
A vida é assim, assim - disse eu para D. Diva, deixando pra lá o que mais ela falou sobre o gordo. Esse gordo – o da esquina que morreu – foi meu colega no grupo escolar. Os olhos de sapo ele sempre teve, empapuçados, como se tivessem sido untados com óleos encorpados e pouco fluídos. Daí que era só ele aparecer para a molecada gritar:
- Sapo, sapo, sapoooo.
O sapo abaixava a cabeça e sorria. Meninas se afastavam dele, jurando que ele comia insetos. Uma tal Mariinha – nunca me esqueci dela – dizia que o sapo tinha preferência por vagalumes. Ainda hoje acho que a Mariinha ficou impressionada com aquela poesia do João Ribeiro cujo título é “O vagalume e o sapo”. A poesia constava da cartilha que usávamos na escola. É dessas que tem o moral da história porque, no final, um “feio sapo repelente, sai do córrego lodoso, cospe e baba de repente, sobre o inseto luminoso”. Ao que o vagalume pergunta:
- Porque me vens maltratar?
- Porque estás sempre a brilhar – responde o sapo.
Foi assim que aprendemos porque o brilho pessoal incomoda tanta gente…
Mas, deixa prá lá. O tempo passou, o gordo cresceu, eu também. Saí da minha terra natal e me aventurei pelo mundo, dando-me mal e bem, mais bem que mal. Até que um dia, cansado de tertúlias inúteis e explicações insatisfatórias sobre o sentido da vida, li que os elefantes voltam ao lugar onde nasceram para morrer. Na falta de outra justificativa essa me pareceu muito razoável para vender um pequeno negócio, juntar uns dinheirinhos e voltar para a minha terra, esperando não sei bem o quê.
Foi nessa ocasião, há uns pares de anos, que vim morar nesta casa, na mesma rua que o gordo. Tempos depois da minha chegada estranhei que o gordo ficasse, sempre no fim da tarde, na janela da casa dele, observando a rua. Com ele nunca troquei mais que um aceno de cabeça: eu passando, ele na janela.
Mais uma vez foi D. Diva quem matou minha curiosidade sobre os hábitos, digamos pouco usuais, do gordo. Contou-me a fofoqueira que há alguns anos o gordo se casara com a mulher de seus sonhos, sabe quem? Acreditem: justamente a Mariinha. Se foram felizes juntos , ou não, ninguém sabe, mas é certo que pelo menos o gordo era feliz. O casamento durou até que a Mariinha desapareceu. Os esforços do marido para localizá-la resultaram inúteis até que se soube, por meio de um parente, que ela fugira com um sargento de polícia.
A notícia chegou ao gordo que, a partir desse dia, nunca mais saiu à rua, reduzindo seu contato com o mundo aos breves períodos na janela, pouco antes do anoitecer.
Devo dizer que a morte do gordo me entristece e alegra. O aparente paradoxo se explica: entristece porque afinal é um ex-colega, o sapo, que partiu desta para a melhor; alegra porque ele finalmente livrou-se de sua prisão voluntária, utilizando a única saída que lhe era possível.
É lugar-comum dizer que a morte é uma fazedora de vazios. Mas que outra coisa dizer se é bem isso o que acontece? O fato é que há dois dias não saio de casa: não sei como vou me sentir ao passar pela esquina e ter certeza de que o gordo não mais sairá à janela.
Lá se foi o gordo. Enquanto isso, o elefante que vive na mesma rua aguarda a sua vez.
Por fim, resta citar Drummond:
- A vida é gorda, oleosa, mortal, sub-reptícia.