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Relato sobre sonhos
Em 1977 o escritor argentino Jorge Luís Borges proferiu sete conferências no teatro Coliseu, em Buenos Aires. Elas foram reunidas em livro com o título de “Sete Noites” (publicado no Brasil em 1983, Editora Max Limonad). A segunda dessas conferências recebeu o título de “O pesadelo”. Nela Borges fala sobre sonhos e pesadelos. Sendo os sonhos o que ora nos interessam, vamos ater-nos a algumas observações feitas por Borges em relação a eles, observações essas úteis para que possamos nos aproximar de algum tipo de explicação sobre a breve história que contaremos a seguir.
Borges lembra-nos de que não se podem analisar os sonhos diretamente, mas somente através da memória que guardamos deles. O escritor cita Sir James Frazer, antropólogo que publicou, em 1922, a obra que recebeu o nome de “O ramo de Ouro” (publicado no Brasil em 1982, Zahar Editores). Segundo Frazer os selvagens não distinguem entre a vigília e o sonho de vez que para eles os sonhos nada mais são que episódios da vigília. Borges acrescenta que para os poetas e os místicos toda vigília parece ser um sonho. Cita Calderón para quem a vida é um sonho e Shakespeare que afirma que “somos feitos da mesma matéria de nossos sonhos”.
A literatura nos oferece várias interpretações a respeito da dualidade de sonho e vigília, não sendo raras narrativas em que ambas se confundem, sendo impossível determinar em que lado fica a realidade. Escritores latino-americanos tratam do assunto e na literatura árabe encontram-se narrativas do mesmo gênero.
Recorro a essas informações antes de narrar o estranho caso de um homem que, entre a vigília e o sonho, confundiu-se justamente no tocante à realidade. Mas vamos ao caso que falará melhor por si só.
A princípio ele estranhou, mas logo admitiu ter dupla existência: o funcionário público que era durante o dia deixava de existir ao adormecer e sonhar que era uma jovem, vivendo noutra cidade e país. Já a vida dessa mulher interrompia-se no momento em que ela se deitava, fechava os olhos e sonhava que era um funcionário público.
Durante algum tempo, o funcionário e a jovem viveram um no sonho do outro. De naturezas muito semelhantes, conheciam-se apenas através dos sonhos e um se deliciava com as aventuras do outro nos mundos diferentes em que viviam. Essa situação perdurou até a ocasião em que o funcionário começou a sair mais cedo da repartição onde trabalhava para tentar adormecer. E pioraram ainda mais quando ele passou a usar soníferos. Agora o funcionário passava quase todo o tempo dormindo e a jovem raramente pregava os olhos. Até o dia em que ele sonhou que ela tomava calmantes fortes para adormecer.
Foi nesse período que o funcionário passou a dormir pouco e adoeceu. Desesperava-o a idéia de estar condenado à vigília para que a jovem de seus sonhos pudesse dormir e sonhar. Debalde um psiquiatra tentou convencê-lo de que a sua vigília não era determinada pelo sonho de alguém cuja existência não poderia ser real.
Não será preciso dizer que o caso evoluiu mal. A internação e grandes doses de tranqüilizantes resultaram infrutíferas. No final, o funcionário, magro e torturado, andava de um lado para outro dizendo coisas desconexas.
Conta-se que na sua última hora ele se deitou e fechou os olhos. Há quem diga que talvez ele tenha conseguido dormir por alguns instantes. Entretanto, logo abriu os olhos e balbuciou algo sobre não temer a morte porque descobrira a chave do enigma: ele jamais fora real, sua existência nada mais fora que o sonho de outra pessoa.
Esse caso foi apresentado a estudantes de psiquiatria que divergiram, classificando-o apenas com o diagnóstico genérico de “loucura”. Análises da estrutura do cérebro do funcionário, realizadas após a autópsia, não revelaram qualquer tipo de anormalidade.
Se Sir James Frazer estiver certo quanto à não distinção entre sono e vigília não é impossível que a jovem tenha sonhado a loucura e a morte do funcionário.