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Voto obrigatório?
Se há coisa difícil de entender são os tais meandros da lei. Para o mortal comum existe uma verdade cristalina: pessoas que têm débito com a Justiça não podem se candidatar. Ponto. Entretanto, não é assim que funcionam as coisas: é preciso discutir a constitucionalidade da Ficha Limpa; se as fases de tramitação foram obedecidas; se a lei aprovada é válida para as próximas eleições ou não; e assim por diante.
É aí que entra a figura do Supremo Tribunal Federal (STF), composto por altos magistrados, descontadas eventuais indicações guiadas por interesses políticos que talvez interfiram. Espera-se do STF decisão rápida e moralizante, mas os juízes esbarram em mil e uma dificuldades, afinal legislação é legislação e há que se obedecê-la. Então acontece um empate e a lei fica no limbo esperando algum tipo de solução. Logicamente, os candidatos que devem à Justiça vibram porque favorecidos; a imprensa se revolta e cobra ação do STF; a população dá de ombros porque “neste país” tudo é possível e ninguém já não estranha nada.
Que pensar? Certamente juristas teriam uma longa lista de prós e contras à aprovação da lei. Está em questão o Direito e não há que se tomar atitude que fira os códigos que sustentam o Estado. Tudo bem, mas seria de se perguntar: caso o assunto fosse considerado em época distante de eleições, os magistrados estariam discutindo tanto?
A política no Brasil só não chega à barbárie porque os envolvidos usam terno e gravata. Senão veja-se: o STF não consegue se decidir sobre a Ficha Limpa; O PT entra na Justiça contra a exigência dos eleitores apresentarem documentos de identidade pessoal por ocasião das eleições; um promotor quer submeter o palhaço e candidato Tiririca a um teste de leitura e escrita por desconfiar que ele é analfabeto; a imprensa publica notícias de que um cantor, candidato a senador, é habituée em espancar mulheres; o presidente da República entra em todos os lares brasileiros para garantir, aos eleitores, que o cantor merece o voto de deles.
Imprensa defendendo-se de acusações de partidarismo, escândalo monumental na Casa Civil, promessas da oposição que jamais seriam cumpridas… Por essas e outras está mais que na hora de se fazer um plebiscito no país sobre a questão do voto obrigatório. Já que existe democracia e os cidadãos têm o direito de opinar, por que não em relação à obrigação de votar?
Senhoras e senhores, inúmeras pessoas não querem votar nessa balbúrdia que lhes é apresentada diariamente. Essas pessoas irão às urnas como se fossem conduzidas ao pelourinho porque estão cansadas de tanta desfaçatez e desrespeito às suas inteligências.
O Brasil não merece isso que está aí, não. Os brasileiros também não.
O menino Sean
A foto do menino Sean, chegando à embaixada dos EUA, é constrangedora. Ele aparece abraçado a um parente e é protegido pelo braço do advogado que cuida do seu caso.
Sean está ali para ser entregue ao pai norte-americano, o que deve ter ocorrido há pouco por que expirou-se o prazo dado pelo Supremo Tribunal Federal para que isso ocorresse. A história do caso todo mundo conhece: a mãe do menino morreu, ele vive com os avós no Rio e o pai reclama seu pátrio direito sobre o filho.
A decisão do STF teve grande repercussão não só no Brasil como na imprensa internacional. Um acordo econômico que estava suspenso nos EUA enquanto a situação do menino não fosse resolvida, foi fechado após a decisão do STF. Os avós de Sean dizem que o Brasil trocou o menino pelo acordo. Os noticiários da televisão norte-americana falam sobre o caso usando o tom de menino roubado do pai.
No centro de tudo isso está Sean. Olhem para o rosto dele na foto: verão uma criança assustada, agarrada a um parente, olhando temerosa para aquilo que o aguarda, talvez perguntando-se por que tinha de ser assim justamente com ele.
Sean tem só 9 anos de idade. A essa altura deve já estar com o pai dentro da embaixada e voará, o mais depressa possível, para os EUA. Fica o seu rosto de choro, espécie de repúdio, provavelmente inconsciente, não contra o pai que o quer, não contra a família que procura retê-lo, não contra a Justiça que se ocupa do seu caso: é contra a sorte, contra a vida do modo que ela está se apresentando a ele que fecha o seu semblante.
Olhem para o menino da foto.
Véspera de natal
Meu irmão mais velho celebrava a véspera de natal lembrando a grande mortandade de perus e galinhas. Festa para uns, desastre para outros – dizia. Mas, ao fazer essa afirmação não era ele movido por nenhuma convicção ou posição ideológica. De fato, meu irmão não tinha, pelo menos aparentemente, preocupações ecológicas e longe dele qualquer possibilidade de ser vegetariano. Ao contrário: era do tipo que ronda as cozinhas, informa-se sobre o andamento dos assados pelo odor que exalam e, na hora da ceia, não perdoa as boas carnes acompanhadas de outros acepipes da cozinha brasileira.
Mas, a véspera de natal é muito mais que o dia de destrinchar frangos. Trata-se de ocasião na qual as pessoas são tomadas pelo sentimento de fraternidade. Não importa que se acuse o natal de ter-se transformado num marco do consumismo; nem adianta protestar contra essa horrorosa obrigação de comprar presentes com data marcada, muitas vezes sem a menor vontade ou inspiração. Acima disso tudo fica o significado de um momento no qual, à revelia dos credos professados, os homens param e refletem, pelo menos um pouco, sobre o significado da vida, suas famílias, os modos de ser e assim por diante.
Há quem não goste do natal. As razões são muitas, começando, em alguns casos, pelas infâncias pobres que transformam o natal num dia de tristes recordações. Os solitários, aqueles que perderam entes amados, os que estão longe da família, esses e muitos outros em situações diversas talvez esperem que a noite de natal passe depressa, quem sabe dormindo o sono dos justos no momento em que as famílias estão ao redor das mesas para a tradicional ceia.
Mas, é às crianças que o dia de hoje pertence. De agora em diante - é manhã – começa para elas um período de contagem regressiva que só terminará quando a surpresa dos presentes for finalmente revelada. Esse, talvez, o lado mais bonito do dia, impresso em faces felizes que aguardam emocionadas o momento em que as famílias se reúnem e os pacotes são abertos
Véspera de natal! Os noticiários informam que, por decisão do STF, o médico acusado de estupro e atentado violento ao pudor contra ex-pacientes sairá da cadeia hoje; Michael Schumacher voltará a correr na fórmula 1 com um carro da Mercedes Benz; e o menino que teve mais de 50 agulhas introduzidas no seu corpo passa bem após mais uma cirurgia.
As notícias parecem distantes. É como se não quiséssemos ouvi-las. De repente, pouca coisa importa e o universo se encolhe aos limites das paredes das nossas casas. É esse lugar, o pequeno mundo que nos protege, o melhor entre todos para passar a noite de natal.
Não receie ser piegas: a ocasião não só pede como permite que sejamos pelo menos um pouco assim, afinal aproxima-se a noite de natal.
A cabeça na bandeja
James Ensor (1860-1949), pintor belga, não é tão celebrado como Cézanne, Van Gogh e outros modernistas. Sua obra plena de expedientes macabros caracteriza-se pela presença de esqueletos em situações diferentes. Em “A entrada de Cristo em Bruxelas”, quadro mais conhecido do pintor, Jesus está montado em um burrico e tem a sua volta uma multidão. No alto há uma faixa onde se lê “Vive La Sociale” e no primeiro plano aparece um esqueleto usando uma cartola.
“Os cozinheiros perigosos” é outro quadro impressionante de Ensor. Nele se vê a cabeça de Ensor em uma bandeja, sendo carregada por um garçom vestido de branco que a servirá a estranhas pessoas sentadas ao redor de uma mesa. Sobre a cabeça de Ensor há uma etiqueta de identificação com o seu nome. “Os cozinheiros perigosos” é um auto-retrato horrível e macabro.
Lembrei-me de James Ensor ao receber a notícia de que o ex-ministro Antonio Palocci foi absolvido pelo STF acusado que foi pela quebra de sigilo bancário do caseiro Francenildo Costa. Não sendo jurista e desconhecendo os meandros das leis, devo acreditar que homens do gabarito dos ministros do STF tenham agido acertadamente. Entretanto, caso me apóie no que a imprensa noticiou a respeito do assunto e na opinião de vários juristas, a decisão do STF estourou do lado do mais fraco. E não há porque se negar que o resultado não era o esperado pela população, daí somar-se no imaginário popular como mais um arranjo em torno da impunidade de membros pertencentes à cúpula que governa o país.
Mas foi a imagem do caseiro Francenildo, homem simples cuja palavra foi vencida no embate com a do poderoso ex-ministro, que me levou ao auto-retrato de James Ensor. Caso Francenildo fosse um pintor e se dispusesse a pintar um auto-retrato, como o faria? Pois me pareceu que desenharia algo como “Os cozinheiros perigosos”, pois seria inevitável que entendesse de modo diferente a sequência de fatos que deram a ele tanta notoriedade.
Fernando Rodrigues escreveu na “Folha de São Paulo” que o STF ministrou a caseiros, mordomos, secretários e motoristas de poderosos a lição de que as suas palavras não valem nada. Devem, portanto, tomar cuidado. Acrescento que não é nem um pouco difícil terem as suas cabeças servidas em bandejas por garçons vestidos de branco e a convivas inebriados pelo poder.