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Noivado em São domingos
Na última vez que vi a grande biblioteca os livros estavam amontoados uns sobre os outros, formando uma pilha, como se alguém os tivesse disposto assim para queimá-los. Mas não era o fogo que os ameaçava: o teto do cômodo onde estavam ruíra em parte e gotas de chuva chegavam até eles, molhando alguns para o meu desespero.
Em vão discuti com o proprietário dos livros sobre a inconveniência daquela situação. Dera ele à biblioteca o mesmo fim que impusera à sua vida, agora confusa e sem o brilho de outrora. Perdido entre problemas menores, que sua lúcida inteligência era totalmente incapaz de organizar, transformara a cultura que adquirira através da leitura numa pilha, simulacro de sua própria alma.
Quase nada pude fazer contra o inevitável: consegui, numa distração do proprietário, salvar alguns livros que ainda hoje tenho comigo. A maioria sucumbiu à chuva e ao relento, desaparecendo sem deixar vestígios. Foi assim que uma grande biblioteca, formada entre os anos 30 e 60 do século XX, deixou de existir.
Lembrei-me da biblioteca desaparecida nesses dias em que o Haiti é mencionado diariamente no noticiário em decorrência do grande terremoto que se abateu sobre aquele país. As terríveis cenas de destruição e a violência a que são arremetidos os haitianos, em sua busca de sobrevivência a qualquer preço, remeteu-me a um dos livros que salvei da grande biblioteca. Trata-se de “Noivado em São Domingos”, obra do escritor prussiano Heinrich Kleist (1777-1811).
A leitura do primeiro parágrafo do “Noivado” nos introduz no universo trabalhado por Kleist:
“Em Port au Prince, do lado francês da Ilha de São Domingos, no início deste século, quando os negros matavam os brancos, vivia um terrível preto, cujo nome era o Congo Hoango.”.
O texto nos remete à luta pela libertação dos escravos do lado francês do Haiti, ocorrida entre 1793 e 1803. Lembremo-nos de que o Haiti foi a primeira nação no muno latino-americano e caribenho a se tornar independente, em 1803. Note-se que o nome “São Domingos” era dado à ilha antes de sua divisão em dois países, o Haiti e a República Dominicana. A libertação do Haiti partiu de movimentos organizados por quilombos onde se falava a língua creole e a religião era o vodu (síntese da religião católica introduzida pelos colonizadores e rituais africanos).
Do movimento de libertação participaram, em épocas diferentes, líderes como o africano Francois Makandal cuja tática era queimar plantações e casa de colonos. A outro líder, Boukman Dutty, escravo fugido, atribuí-se a realização de uma reunião entre vários líderes na qual se celebraram vários ritos tribais e de vodu, decidindo-se, ao final, pela morte de todos brancos da ilha. A partir daí, iniciou-se uma grande queima de plantações e morte de colonos.
É a esse episódio que se refere Kleist no seu “Noivado”. Não só “Noivado”, mas os outros livros de Kleist são ambientados em fatos históricos que, por assim dizer, sustentam as tramas ficcionais engendradas pelo escritor. Em relação a “Noivado” coloca-se em suspeição a posição do narrador da história - o próprio Kleist: compartilharia ele o ponto de vista colonialista e racista que existe em seu texto, ou teria escrito justamente para expor os extremos a que conduz a dominação do homem pelo homem?
De parte dessa discussão fica a obra, marcadamente identificada com o romantismo alemão, ainda hoje muito interessante. “Noivado em são Domingos” nos remete ao mundo de formação do Haiti. Embora não seja pretensão de Kleist narrar a história do país – a obra é ficcional – através dela pode-se conhecer um pouco do passado daquele país e inferir o curso histórico que seguiu até os lamentáveis dias de sofrimento pelo qual sua população passa nos dias atuais.
A morte de D. Zilda Arns
O que chama a atenção no episódio que vitimou D. Zilda Arns é, por assim dizer, o capricho da fatalidade. Médica pediatra, sanitarista e fundadora e coordenadora da Pastoral da Criança e da Pastoral da Pessoa Idosa, Zilda Arns tinha viajado para o Haiti no último fim de semana. Sua missão era levar para o país mais pobre das Américas a metodologia de atendimento da Pastoral da Criança no combate à desnutrição.
No momento do terremoto D. Zilda estava numa escola fazendo uma palestra. Com o abalo sísmico que sacudiu o Haiti o prédio desabou, sendo D. Zilda atingida por uma laje. Ela não resistiu ao impacto e morreu.
As fatalidades sempre impressionam e nos levam a perguntar por que determinada pessoa estava em certo lugar justamente na hora de um acontecimento grave. D. Zilda poderia ter viajado para o Haiti em qualquer outra ocasião, mas quis o destino, ou o que seja, que ela estivesse lá, dentro de um prédio que iria desabar no momento de ocorrência do terremoto.
É certo que ponderações como as anteriores carecem de valor e o acaso surge como o grande articulador da tragédia acontecida com D. Zilda. Entretanto, a singularidade do evento não deixa de ser estranha e incomoda dada a sensação de perda irreparável que poderia, talvez, ser evitada. O certo é que a morte veio interromper, naquele lugar, uma vida de grande plenitude caracterizada pela prática do bem e ajuda humanitária aos semelhantes.
É essa estranha força que parece guiar destinos e dispor de vidas a seu bel-prazer que chama a nossa atenção neste momento. Destruição, mortes e sofrimentos inenarráveis abateram-se sobre um país onde as condições de vida já eram inaceitáveis. As imagens que vemos pela televisão emocionam tal a dimensão do desastre fazendo-nos refletir sobre governos e desigualdade.
A perda de D. Zilda terá, talvez, o mérito de chamar a atenção dos povos da Terra sobre as dimensões da miséria agora exposta a céu aberto, contra a qual medidas concretas são necessárias. É nesse ponto que nos parece que o capricho do destino teve o seu lado positivo: D. Zilda estava lá, em meio aos pobres e desvalidos no momento da tragédia. Não terá sido, então, por acaso. Por isso, as mais lúcidas palavras sobre o desaparecimento de D. Zilda tenham partido de seu irmão, D. Paulo Evaristo Arns, arcebispo emérito de São Paulo. Compreendendo de imediato a dimensão da morte da irmã, nas circunstâncias em que ocorreu, disse o arcebispo:
“Ela morreu de uma maneira muito bonita, morreu na causa que sempre acreditou”.