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O dia de finados
“O trânsito engarrafado nas ruas próximas a cemitérios e a exploração dos comerciantes de flores, que cobravam preços muito acima da tabela fixada pela SUNAB, foram as maiores dificuldades que os cariocas enfrentaram ontem para reverenciar os mortos. A frequência foi maior nos cemitérios da Zona Norte, nos quais, entretanto, era mais reduzido o número de flores levadas aos túmulos e sepulturas. Na Zona Sul, muita gente preferiu aproveitar o dia de calor intenso para ir ao banho de mar.”
A notícia acima, que poderia perfeitamente adaptar-se ao dia de hoje, foi publicada na edição do dia 03/11/1967 do extinto jornal “Última Hora”. As pessoas iam aos cemitérios como vão hoje e certamente continuarão a ir, no futuro. Passados 44 anos desde o dia da publicação da notícia acima o mundo continua redondo e girando do mesmo modo. O Brasil já não é o mesmo daquela época, a ditadura militar então vigente duraria até meados dos anos 80 e a democracia republicana seria instalada para sobreviver, mal e bem, até os dias atuais.
A diferença marcante entre os finados de 1967 e o de hoje está gravada nas lápides de túmulos e sepulturas: grande parte das pessoas que foram homenagear aos mortos no ano de 1967 hoje estão enterradas, merecendo a visita e lembrança de pessoas queridas. Do que se conclui que os homens passam, a vida passa e o mundo segue em sua linha irreversível de noção de eternidade.
Finados é um bom dia para não se pensar na morte propriamente dita, mas na vida e a duração dela. De repente - e surpreendentemente – observa-se que o tempo passou e toda aquela juventude acompanhada de seus arrivismos cedeu lugar a movimentos mais lentos e estudados, nascidos da abdicação muscular à força que desfrutavam antes. Envelhece-se devagar e maciamente, irreversivelmente. A cada dia deixa-se para trás algo que foi muito importante ao seu tempo, mas que agora torna-se distante apesar de suas prováveis e duradouras consequências. De repente - é sempre importante frisar esse “de repente” – está-se envelhecendo e, finalmente, velho. Aquele vaso de plantas que se levantava com facilidade, as malas de viagem carregadas até com desdém, o movimento febril das pernas que impulsionavam balanços estapafúrdios ao corpo, para onde foi a espontaneidade da juventude que em algum ponto da trajetória foi perdida irreversivelmente?
Então, está certo: finados é mesmo um bom dia para se pensar na vida e na duração dela. Não é data para que passemos a nos preocupar com o fim, mas sim de como viver bem o tempo que nos falta até chegar a ele. Nada de olhar para as lápides dos nossos ancestrais e nos imaginarmos mais perto ou mesmo em meio a eles, transformados em nada mais que um nome inscrito numa pedra com datas de começo e fim da vida. Na verdade a lápide com o nosso nome inscrito não nos interessa porque então teremos deixado de ser e sabe-se lá o que há depois da vida, se é que realmente existe algo nos esperando depois.
Minha mulher tem uma amiga que diz que no dia de finados os espíritos estão livres e em festa. Não sigo o mesmo credo da amiga da minha mulher, mas gostaria muito que as coisas se passassem bem do jeito que ela diz: espíritos livres e em festa. Quem sabe, assim, meus pais e irmãos já mortos poderiam passar esse dia contentes e em ambiente festivo, possuídos pela alegria de quem já não precisa da vida para existir. Não sei dizer como isso seria possível, mas se o credo da amiga de minha mulher garante que é assim, por que duvidar?
E volto ao trânsito do dia de finados, em 1967. Imagino o calor no Rio, as pessoas paradas nas ruas ou em cemitérios, outras dando as costas ao dia e preferindo o sol e o mar. Muitas daquelas pessoas estão vivas, muitas outras já morreram e não me dói nada constatar que a mesma coisa esteja a se repetir no dia de hoje, enquanto me sinto eterno e olho para a cidade silenciosa que desperta para mais um dia de finados.