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A chuva
Daqueles tempos ficaram as imagens do encarregado da Companhia Sul Mineira de Eletricidade, encostando a escada no poste em cuja parte superior ficava o transformador. As descargas elétricas dos raios atingiam o transformador, gerando faíscas que nos aterravam. Mas, o encarregado não tinha medo daquela festa de cores tão perigosas. Assim, ele conseguia desligar a chave do transformador, deixando o lugarejo às escuras. Só mais tarde, após o fim da tempestade, ele voltaria para religar a energia local.
Eram temporais violentos. O riozinho que ficava nos fundos de nossa casa transbordava e a água chegava à nossa porta. Certa madrugada fomos despertados por trovões e relâmpagos que se repetiam ininterruptamente. Tantos eram que a noite se encheu de claridade. Era de costume cobrirem-se espelhos e queimar ramos de plantas que tinham sido abençoados, na igreja, na missa do Domingo de Ramos. Minha mãe e minha tia corriam nesses fazeres que funcionavam como pedido de clemencia aos céus. Por sim, ou por não, algum tempo depois a tempestade amainava. Seguia, na madrugada, a chuva fina, batendo contra o telhado.
Na manhã seguinte as pessoas falavam sobre a chuva da noite anterior. Vez ou outra chegavam notícias de cidade próxima na qual aconteciam trombas d´água com alguma frequência. Nuvens tocavam o cume dos morros e descarregavam muita água que descia, ribanceira abaixo, levando tudo o que estivesse em seu caminho. A força da água destruía casas e matava pessoas e animais.
Não sei dizer se as grandes chuvas de agora se equiparam àquelas dos meus tempos de menino. Talvez por eu ser pequeno as tempestades de então me pareciam tão colossais. Entretanto, o que acontece atualmente chega a ser desesperador. Chove num só dia o equivalente à mais que metade do total de milímetros esperados para o mês. Ruas alagadas, estradas interrompidas, desabamentos, perdas materiais e mortes formam o quadro que se repete nos noticiários que nos chegam diariamente.
Como acontece a cada ano as autoridades são criticadas por não prepararem as cidades para o impacto causado por tantas chuvas. Critica-se o fato de se lembrarem das chuvas apenas quando os desastres acontecem, sempre no início do verão. Mas, depois de março, quando o ciclo das chuvas se reduz, não se fala mais no assunto. Isso é verdade. Entretanto, não se pode ignorar o fato de que, ano após ano, as tempestades têm se tornado mais frequentes, demoradas e violentas.
Nesta madrugada fui acordado pelo ruído de trovões e raios. Chovia copiosamente. Ainda sonolento tive ímpetos de me levantar para cobrir os espelhos de casa e queimar os ramos abençoados na igreja. Mas, sentando-me na cama, percebi que meu corpo há muito deixara de ser pequeno como nos meus tempos de menino. Minha mãe e minha tia já não estavam neste mundo e eu não tinha ramos para queimar. Então, recostei a minha cabeça no travesseiro e me perdi ouvindo o rugido dos trovões que vinham de longe.
Tromba d´água
Chove muito em algumas regiões do Brasil. No interior de Minas corpos de duas crianças são encontrados. Foram levados pela enxurrada. Há pessoas desaparecidas. Imagens de pequenas cidades, praticamente submersas, impressionam. Muita gente perdeu tudo. Uma senhora olha para os destroços do que foi sua casa e mostra desespero. Ao lado dela o marido, um idoso, mira o nada.
Não sei como você se sente em relação a fenômenos naturais imprevisíveis e que causam destruição. Imagino como possa ser a vida de quem vive na região do Caribe que, a cada ano, é assolada por furacões. A ideia de que a destruição se aproxima e será irreversível atordoa. Que fazer quando nada se pode contra a força que oprime?
Tínhamos medo de tromba d´água. Na região onde morávamos não era incomum a ocorrência desse fenômeno. De repente nuvens muito carregadas largavam milhares de litros de água no cume de um morro. A aguaceira descia encosta abaixo, ganhando velocidade, levando consigo tudo o que encontrasse pelo caminho. Árvores eram arrancadas, casas destruídas. Nas que resistiam ao impacto das águas perdas de tudo que havia em seus interiores. Um fabuloso desastre.
Talvez por isso as tempestades incomodassem tanto. Ventos de mais de 80 km horários causavam temor. O fato é que chovia demais na nossa terrinha. Nossa casa era um sobrado. As crianças dormiam na parte de cima. Pelas janelinhas de madeira chegava-nos a luz dos relâmpagos, tantos que iluminavam a madrugada. O ruído da chuva implacável a bater sobre o telhado fazia-nos temer pela tromba d´água. Acontecera há pouco em cidade vizinha, por que não na nossa?
As mulheres cobriam os espelhos, acendiam velas, rezavam. Traziam de suas infâncias, nos inícios do século 20, crenças e hábitos que supunham agir para aplacar a ira do temporal. Queimavam-se ramos guardados desde a semana santa nos quais depositava-se a fé da proteção sobrenatural.
Felizmente haviam as novas manhãs. Acordávamos e íamos à rua para ver o que acontecera. Em geral presenciavam-se pequenas avarias, telhas arrancadas e algum telhado, etc. Não fora desta vez que a tromba d´água nos surpreendera. Aliás, nunca aconteceria.