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80 anos
Pessoa conhecida faz 80 anos. Eu a felicito, desejando muitos anos de vida. Ela responde: deseja isso porque não gosta de mim.
A velhice é a incógnita. Seguir adiante para que? Pelo menos se a saúde ajudar. Mas com tantas dores… A rotina de frequentar salas de espera em consultórios médicos é torturante. Ali se reúnem, todo dia, pessoas em sua maioria idosas. Muitas delas na verdade não sofrem de sintomas que justifiquem tantas vezes aos médicos. É o medo da doença que as conduz. O medo do que está pela frente. O medo do fim. Da morte.
Mas as estatísticas impressionam. A longevidade alcança barreiras até então difíceis de atingir. Relata-se a morte recente de uma mulher aos 122 anos de idade. Por detrás do grande aumento do número de idosos os avanços da medicina. Novas técnicas de diagnóstico. Novos medicamentos. Cura ou mesmo prolongamento da vida em doenças ainda incuráveis. O mundo está aberto a novas conquistas científicas.
A sociedade se acanha diante da mudança na pirâmide de idades. Mais velhos a manter no sistema econômico já abalado. O estreitamento da base e o alargamento do topo da pirâmide revela-se problema de difícil solução. Afora a falência do sistema de saúde que deixa à margem de atendimento tanta gente.
O medo ligado à velhice relaciona-se à perda de controle sobre si próprio. O horror da dependência física num momento em que se perde a capacidade de fazer coisas por si mesmo. A torturante incapacidade dos presos às cadeiras de rodas. Perguntada sobre a velhice famosa escritora resumiu: é uma merda.
Mas, existem outros problemas. Teme-se, com razão, o Alzheimer. Parentes temem vir a sofrer de males semelhantes. Alguém, perto dos noventa, apresenta pequenos esquecimentos. A parenta, passada dos setenta, teme que a prima esteja com Alzheimer. Se acaso estiver será que não acontecerá também comigo? Nada garante. Mas como convencer a mais nova, preocupada, de que não correrá riscos?
A vida passa, não tem jeito. É sempre bom presenciar a chegada de uma pessoa aos oitenta, em boa forma, embora as reclamações quanto a pequenos males que a incomodam. Afinal, a velhice não é o fim do mundo.
O velho do ponto
O velho parado no ponto de ônibus trazia no olhar o desencanto pela mesmice. Para ele o mundo talvez não mudara nada nos últimos 50 anos. As pessoas que passavam por ali seriam as de sempre, seres humanos, simplesmente. O olhar do velho não era de julgamento: mostrava o desinteresse por um mundo no qual deveria seguir vivendo apesar do enfado. Talvez não ansiasse pela morte. Aceitaria o enigma da existência sem questioná-lo.
Mas, por que estaria o velho ali, àquela hora, parado no ponto por onde nenhum ônibus passaria? Não saberia ele que o ponto fora desativado desde que a engenharia de tráfego da cidade mudara o sentido do trânsito? Não fora informado de que o novo alcaide, um rapaz reformador, parecia tirar da cartola mudanças radicais que geravam protestos como aquele na ponte no qual uma moça fora atingida e morrera?
O velho parado no ponto talvez fosse insensível às notícias recentes. Seu olhar traduzia a amargura de acontecimentos passados e talvez não tivesse mais força para novidades.
Foi assim que eu o vi. De dentro do carro encarei o velho. Tamanha impressão me causou seu rosto que suspeitei que, talvez, não fosse real. Velho imaginário, então? Ou seria a minha própria imagem, parte do que fui sou e serei?
Tenho passado pela mesma rua regularmente. Não encontrei mais o velho. Aliá, nem o ponto de ônibus que, pensando bem, talvez nunca tenha existido.
Dona Maria
Passou por aqui a Dona Maria, primeira funcionária contratada na empresa onde trabalho há 30 anos. Lembro-me bem da primeira vez que a vi, surgida do nada, sem ser chamada. Viu a porta aberta, entrou, disse que queria trabalhar. Perguntada sobre o que fazia torceu a boca e respondeu: o que vocês mandarem.
Passou pela limpeza, produção de café e lanches para funcionários, um punhado de funções menores, mas de suma importância, essas coisas nas quais não se presta muita atenção, mas que, sem elas, nada funciona.
Dona Maria é da casa pela qual sempre teve e tem grande amor. Acompanhou pessoas que trabalharam na empresa ao longo dos anos e guarda na memória o nome de cada uma delas. Há dois anos a saúde dela baqueou daí ter-se afastado. Conta sobre dores nas pernas e nos braços e percebe-se alguma dificuldade respiratória nela enquanto fala.
Pergunto a Dona Maria sobre a idade dela. Ela me diz que se viver até setembro completará 69 anos. Brinco com ela perguntando quando retornará ao serviço. Ela sorri e avisa que talvez nunca mais volte porque a saúde não vai deixar. Diz isso e sorri. Acrescenta que é a mais velha entre seus irmãos daí que será a primeira a partir para o outro mudo.
Dona Maria passou bem uma meia-hora comigo. Falou mais de mortos que de vivos, do neto de quem cuida e agora tem 11 anos de idade. O menino é autista e ainda não fala. Adora rasgar papel e isso exige muito cuidado. Ontem mesmo pegou a bolsa de D. Maria e rasgou documentos dela mais duas notas de 20 e uma de 10 reais.
Para animar digo a Dona Maria que ela ainda vai viver pelo menos mais 30 anos. Ela ri. Depois, séria, diz que não quer morrer até ver o neto falando e sendo capaz de se virar no mundo.
- Ele já entende as coisas. Antes quando entrava num comércio pegava coisas e ia saindo. Agora já sabe que é preciso pagar: pega e vai para o caixa comigo. E está na escolinha que só têm autistas. Pensei em colocar ele numa maior, de inclusão, mas hoje em dia tem muita criança malvada e poderiam judiar dele.
Dona Maria se despede de mim com um abraço. Já não é a mulata forte e decidida que certo dia entrou no prédio e se ofereceu para trabalhar. Mas, o coração é o mesmo, com a bondade de sempre e a resistência que a faz suportar sem reclamar as vicissitudes da vida.
O tempo passa
Há alguns anos assisti a um filme estrelado por Paul Newman, se bem me lembro “Estrada da Perdição” ao lado de Tom Hanks. Nada a ver com a excelência do desempenho de Newman, mas causou-me funda impressão o fato de ele estar velho. O problema é que as imagens do Newman de “Gata em Teto de Zinco Quente” e mesmo a de “Butch Cassidy and Sundance Kid” - esse filmado anos mais tarde - não me saiam da cabeça. Para mim Paul Newman seria sempre o mesmo, incólume à velhice, fazendo-me crer que afinal homens e épocas podem ser parados no tempo, recurso esse muito útil para garantir alguma eternidade às nossas tão efêmeras vidas. Enfim, só as memórias podem emprestar alguma perenidade a homens e fatos de vez que tudo passa e nada se pode fazer contra isso. Machado de Assis relata, em crônica, sua ida a um enterro ocasião em que, ao sair do cemitério, avistou crianças correndo entre os túmulos. O contraste entre o fim e o começo da vida serviu ao grande escritor para a realização de um texto que nos coloca diante dos grandes temas da obra dele quais sejam a morte, o perecível e a despreocupação da infância.
Há pouco tempo o cantor Roberto Carlos fez 70 anos e agora é o parceiro dele, Erasmo Carlos, que chega à mesma idade. O fato é que não há como não se lembrar deles, na década de 1960, agitando com músicas como “Parei na contramão”, “O calhambeque” e muitas outras. Não será exagerado dizer que, em termos de memória, aqueles anos não seriam os mesmos sem as músicas da dupla, assim com teriam sabor diferente acaso não tivessem existido os Beatles.
Tudo isso pode parecer óbvio demais. Entretanto, justamente a passagem do tempo para personalidades que de uma ou outra forma se destacaram nos serve para balizar o nosso próprio envelhecimento. O fato é que nenhuma plástica ou botox logra enganar o tempo que corre, restando-nos apenas o imenso prazer de imergir no passado nos moldes que nos foram legados por Proust. No início do livro “O caminho de Swann”, o primeiro dos sete romances que compõem a grande obra “Em Busca do tempo Perdido”, o narrador de Proust apresenta-se no momento em que mergulha um bolinho numa xícara de chá, recuperando, desse modo, o sabor da iguaria a que se acostumara nas manhãs de domingo da sua infância. É através de referências que Proust constrói a narrativa, caracterizando o valor de cada coisa e a importância dela na formação de seu caráter e sua própria vida.
Paul Newman, Roberto e Erasmo Carlos e os Beatles são referências de épocas, permitindo-nos voltar ao passado, tantas vezes revivendo com intensidade situações vividas. O tempo passa, mas não destrói as memórias que só se apagam definitivamente com a morte, embora sempre existam crianças correndo entre túmulos para que novas lembranças se construam e deem sentido à vida.