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O guarda do vento

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Maio vem aí, mês das noivas, mês de Maria para os devotos da santa cuja fé os remete aos acontecimentos de 13 de maio, na Cova da Iria.

Chove nas igrejas do Brasil. No interior de Minas Gerais os sinos badalam juntos e a vida segue o ritmo dos relógios das matrizes que marcam o tempo mais vagarosamente que quaisquer outros.

Abro uma pasta e encontro fotos de pessoas que já morreram. Elas parecem fortes e seguras em suas poses para fotógrafo. Os sorrisos continuam iguais e atrás das pessoas a paisagem guarda, para sempre, figurações do passado. Pessoas mortas e mundos desfeitos se pertencem, indissoluvelmente.

Breve chegarão aqui os primeiros ventos, anunciando a proximidade do inverno. Não são iguais a esses ventos que têm batido nas nossas janelas, desiguais e agressivos, gerados por descompassos ambientais. Os ventos que hão de vir terão nascido nas paisagens longínquas e geladas do pólo e viajarão com destino certo. Creio que sua chegada se dê na segunda quinzena de maio, talvez, como em outros anos, as primeiras rajadas aportem ao raiar do dia.

Ficarei atento. Estarei na praia, vigiando, esperando os ventos que anunciarão a proximidade do inverno. Desde que nasci a minha missão foi esperá-los.

Notícias da manhã

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Ventou muito durante a madrugada. Os ventos chegaram do Sul com violência diminuída, mas ainda muito fortes.  Fizeram barulho, arrancaram telhas de casas, arremessaram-se contra as janelas.

Os noticiários da manhã começaram com informações sobre o vento e a chuva. Em Porto Alegre trinta postes de iluminação caíram e bairros estão sem luz. Em Santa Catarina a chuva agravou ainda mais a situação de municípios que já sofriam com inundações.

As imagens de destruição vêm de toda parte. Na Indonésia um terremoto provocou uma avalanche que vitimou várias pessoas. Uma câmera de vigilância gravou imagens de pessoas desesperadas correndo para fora de um hotel que começava a desabar. Nem todos conseguiram sair e agora procuram-se vítimas nos escombros do hotel completamente destruído.

Você dormia  enquanto tudo isso acontecia, incomodado com os uivos do vento e o barulho das venezianas batendo.

Durante o café da manhã, mais notícias chegam. Agora já não se fala sobre vento e chuvas, mas sobre filiações partidárias. É chegada o momento dos puxadores de voto filiaram-se a partidos garantindo votos para as legendas. É bom lembrar que dos mais de 500 deputados federais eleitos no último pleito apenas 40 venceram às custas dos votos que receberam.  Os demais se beneficiaram dos votos das legendas.  Por essas e outras o ex-jogador Romário filiou-se a um partido.  Aconteceu que ele pretendia filiar-se ao PSDB, mas por descuido filiou-se ao PSB. O erro fica por conta da semelhança das siglas já que provavelmente o ex-jogador não estava se filiando a um partido por razões ideológicas.

Você vê tudo isso na televisão enquanto se prepara para sair de casa e enfrentar o dia de trabalho. Até aí mesmo os absurdos parecem normais porque se tornaram cotidianos. O mundo é irremediavelmente absurdo e parece que nada existe para se fazer a respeito. Você já nem pensa mesmo em fazer alguma coisa porque se sente impotente para mudar o rumo do que quer que seja.

Está assim, entre animado e desanimado, mais para conformado com o rumo inexorável das coisas quando vê, na telinha da televisão, um trator em meio a uma plantação de laranjas. São inúmeras pequenas árvores enfileiradas que vão sendo abatidas, uma a uma, pelo trator.

O mundo é absurdo, mas o que você está vendo é irracional demais, não tem sentido. Você pensa no trabalho de pessoas para fazer a plantação e a destruição pura e simples de tudo consegue finalmente abalar o seu conformismo. Você não vai à janela para gritar, não esmurra a parede. Entretanto aquilo rompe momentaneamente a sua relação de racionalidade com o mundo.

Você está assim, indignado, quando ouve o locutor dizer que se trata de um trator do MST derrubando a plantação em mais uma manobra de ocupação.

Você não ouve o fim a notícia. As explicações simplesmente não interessam e você desliga a televisão com um safanão.

Saindo para trabalhar encontra no elevador uma criança que sorri e o leva a ponderar sobre porque o mundo é assim, porque tudo é tão mal feito.

A catadora

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Árvores desnudas, afrontadas pelo vento. De onde vem ele, soprando fundo e forte, cantarolando, uivando, batendo nas janelas, levantando poeira, confundindo? Em quais latitudes terá se formado, de onde sua força para romper barreiras, cruzar mares, impulsionar ondas, empurrar barcos, invadir continentes sem qualquer cerimônia?

As arvores da praia têm caules grossos e fortes, não se curvam. Seus ramos sem folhas travam combates com o vento. De vez em quando uma extremidade sucumbe, é arrancada e a vida que nela demora a desaparecer cai sobre a calçada. Mas é só um vacilo. Depressa a árvore se recompõe, como alguém que se veste rapidamente para não deixar ver algum desassossego.

O vento não desiste. Atravessa a rua, choca-se contra os prédios, declara-se soberano. É possível ouvir as histórias que conta sobre gentes e lugares por onde passou. Traz consigo vagos odores de perfumes, emanações de corpos e restos de tragédias talvez não completamente consumadas. Na voragem de uma lufada mais forte ouvem-se, distantes e imprecisos, gritos de pessoas em prédios desabando, derradeiros suspiros de homens do mar cujos barcos imensas ondas afundaram.

A primeira hora da manhã na praia é imprópria. É hora perdida, domínio da natureza na qual vez ou outra os homens se intrometem sem convite. Trata-se do momento em que forças naturais se integram, trocam energias e preparam o ambiente para o dia que há de vir. Há pouco amanheceu e o dia veio impreciso, cinzento, abafando as muitas cores as quais caprichosamente parece sobrepor. Os sinais de trânsito mudam seus tons preguiçosamente, como se houvessem trabalhado por toda a madrugada para nada. Paira a atmosfera de inutilidade sobre o existir das coisas inertes que o vento teima em deslocar, como a soprar jatos de vida na matéria inanimada.

Há a calçada, a areia e o mar que avança e se retrai, como se seu objetivo fosse inundar a terra, finalmente. Por vezes uma ave solitária surge do nada mas logo desaparece, sugerindo não ter existido, imagem de poeta talvez.

É nessa atmosfera pálida que ela irrompe. Vem de longe, de uma longa noite, de madrugada insone e trabalhosa. É velha e arrasta uma pequena carroça na qual traz a parte do lixo que coletou nas ruas da cidade durante noite. Move-se devagar porque ninguém a espera em nenhum lugar. De vez em quando pára, avança sobre os sacos de lixo deixados por um dos prédios, rasga-os e tira coisas que coloca na carroça. Depois, retoma o seu caminho.

Quando a velha entra na avenida da praia, o vento a recebe como intrusa. Ele faz balançar o corpo dela e ameaça levantar a saia suja. A velha resiste. Em vão o vento toma outra direção, agride os cabelos brancos que, desgrenhados, duros e insolentes, não se movem.

A mulher avança devagar, desafiando o vento. Também ela tem histórias que não contará porque ninguém a ouvirá. É assim que vai passando. O vento que veio de tão longe, parece resignar-se: não pode impedi-la de prosseguir. Ela é a vida que se esvai, o fracasso da uma ordem social, testemunho da possibilidade de sobrevivência em condições impossíveis. Ela é o outro lado de todos nós, que nada já pode derrubar, exceto a morte.

A velha passou com sua carroça pela avenida deserta. Eu a vi. Ainda assim não é possível dizer se ela existiu de fato ou se foi apenas mais uma imagem trazida pelos ventos que batem nas nossas janelas nos alvoreceres, como este que chegou aqui durante a madrugada.

Escrito por Ayrton Marcondes

12 agosto, 2009 às 10:15 am

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Postado em Cotidiano

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